sábado, 13 de agosto de 2016

A razão da loucura

Mercado Governador Albano Franco - Aracaju-SE

Aracaju
Cajueiro arara cor de sangue
Nordeste-sul
Centro da cidade bangue-bangue
Aracaju
Menos o Sergipe mais o mangue
(Aracaju - Tomás Improta - Vinícius Cantuária - Caetano Veloso - 1979)

Tenho por costume me levantar um pouco mais tarde nos finais de semana, algo entre às 7:30 e 8:30, por aí. Pego o carro e religiosamente vou aos Mercados Centrais de Aracaju. Não sei, mas o vozerio, a agitação, o vento que vem do rio, o céu azul... tudo isso, e alguma coisa a mais, me faz ter uma sensação boa de vida.

Acredito piamente que nós brasileiros nascemos com uma desigualdade nas pernas muito grande e que se reflete de forma muito evidente no trânsito: um pé muito pesado para o acelerador e o outro muito lento para o freio.
É meio provinciano ou local isso, um exemplo muito específico, eu sei, porém, todos sabem que para sair andando do estacionamento próximo ao Terminal Mercado (o dos ônibus) e atravessar a estreita rua que dá para o espaço de pescados ou o das carnes do Mercado Governador Albano Franco é necessário um balé acrobático. Um equilíbrio extremo, quase passos certeiros de valsa para nos desviarmos dos carros e motos que parecem ter um prazer extremo em ver os pedestres suados sob sol quente de Sergipe, afoitos na tentativa de chegar até o  primeiro Mercado.
Não sou um bom bailarino. Dois pra lá, dois prá cá.
E hoje, não diferente dos outros finais de semana, quase fui pego por um Siena fire prata, quatro portas, placa de Aracaju e tendo um senhor um pouco calvo, cabelos brancos e camiseta como condutor. Acho que ele estava com uma sede tremenda, um ódio tamanho para acertar as contas com alguém – ou ele é assim mesmo – pois quando tentei atravessar à frente do seu objeto de poder, aquilo que o torna um individuo diferente dos caminhantes, ele acelerou mais e quase me pegou. Curiosamente, fui salvo pela fidalguia de um motociclista que parou o trânsito da “segunda faixa” – não sei bem se existem faixas ali.
Em meio ao caos cotidiano, ainda pude ouvir um “filho da puta!” em brados retumbantes do motorista! Pensei comigo, poxa nem um “filho do cabrunco... foi filho da puta mesmo!”. Vida que segue e a minha seguiu.
Fiz o que sempre faço, passei na mesma banca, com o mesmo moço e pedi uma água de coco, trocamos uma ideia e ele fez a mesma piada dos outros tantos finais de semana: “Já se protegendo pra cerveja da tarde!”. Eu sempre sorrio e balanço a cabeça.
Fui no mesmo vendedor de queijo coalho dos sete anos em que vivo em Sergipe. Conversamos sobre a mesma coisa dos últimos cinco e depois enfrentei as calçadas justas e abarrotadas para comprar um filtro d’água. Na volta, de fato, tomei uma cerveja e comi um caldo de mocotó no segundo Mercado, enquanto os chorões afinavam os instrumentos. Fiquei pouco ali.
No vendedor ervas, bati um papo e comprei um capim santo pro bichano e, de costume, atravessei o que eu chamo de Paço, onde fazem os tradicionais forrós de junho. Tudo muito cansativo para que você me ouça, eu sei. Mas a alguns metros de entrar no primeiro Mercado, o das frutas, o dos pescados... aquele em que tempos atrás quase virei parte de asfalto. Ouço uma voz firme, grosseira, me questionando de forma intimidadora: “Você é maluco é?”.
Nesse momento minha educação tipicamente da Baixada Fluminense surgiu como um sentido de Aranha prevendo o perigo. Continuei em passos normais. “VOCÊ É MALUCO, PORRA? ESTOU FALANDO COM VOCÊ!”. A coisa ficou séria.
Parei. Tiro nas costas se não matar aleija.
Olhei firme, porém tranquilo. “VOCÊ É MALUCO, QUER MORRER?”. Ah, a didática do trânsito. A didática do motorista cheio de razão que não leu a cartilha do DETRAN.
Frações de segundo serão transpostas em palavras para você, afinal, a mente humana funciona de maneira muito curiosa e um segundo realmente pode parecer uma eternidade quando tentamos relembrar e concretizar a memória em palavras. Então me dê sua mão e vamos juntos para dentro da minha cabeça naquele instante que agora se eterniza entre nós dois:
Se eu responder que não sou maluco darei razão a ele para converter a violência verbal em violência física, violência evidente para mim, mas evidentemente natural e correta para ele. Eu continuava olhando, se houvesse um espelho de palavras aqui diria que eu estava mesmo com uma expressão amórfica de louco. Não esboçava reação a não ser a de uma paz interior como instrumento de defesa. Se eu continuar calado, no máximo ficarei ouvindo mais alguns impropérios desse idoso, mau motorista, mau cidadão, arrogante e que deve ter uma vida fodida, tratar mal seus filhos, mulher. Posso mandá-lo tomar no olho do cu, se danar. Mas isso lhe dará razão para partir para cima de mim. Bater em velho é uma puta sacanagem. Porém também posso apanhar. Puta sacanagem. Ele pode estar armado, pode me matar e ele já quase me matou. Eu continuava olhando para ele, se eu tivesse um espelho de palavras aqui diria que eu estava mesmo com uma expressão amórfica de louco. Não esboçava reação a não ser a de uma paz interior como instrumento de defesa, isso só alguns loucos passivos têm. Preciso ser racional. Ficarei parado olhando para ele, sem rir, sem me mexer, a não ser que ele avance. Posso me desviar. Pensei também, confesso, se ele partisse para cima de mim: Posso dar na cabeça dele com a parte de terra da muda de capim santo, o filtro não serve. Não! Vou destruir a muda, destruir o filtro. Fiquei parado, olhando para ele.
“VOCÊ NÃO VAI FALAR NADA NÃO É? ÔXE! É MALUCO MESMO ESSA PRAGA. NÃO DEVIA TÁ SOLTO POR AÍ NÃO, PODIA TÁ AGRADINDO ALGUÉM. AÍ ATRAVESSA ASSIM DESEMBESTADO. E ESSAS MARCA AÍ NO BRAÇO? É COLEIRA? É MACUMBA?”. Eu parado, olhando. Nós dois, talvez, os únicos no mundo. O tempo parado. Entre o centro e a periferia do Paço. Ele, sei lá de onde. Eu de um morro da Baixada Fluminense. Me equilibrando entre o bem e o mal. Meu silêncio, minha segurança. A voz dos meus pais dizendo na infância que quem anda com porco farelo come. Você tem que estudar. Estudar te fará uma pessoa melhor. Minha mãe na última semana aconselhando: você anda irritadiço. Precisa ser mais calmo. Pode surtar a qualquer momento. Eu chorando ao telefone. Minha mãe me aconselhando. E eu parado ouvindo aquele senhor bradando com dedo em riste que eu era maluco. Louco de pedra. Irracional. Eu. Ele. Nós. Eu pensando isso tudo. Um minuto, talvez. Esse foi o tempo. Talvez. A voz dele amansou. Me chamou de filho. Perguntou onde estavam meus pais. Afinal, eu era um louco, um maluco. Aconselhou que eu não devia ficar perambulando pelo Centro de Aracaju. Aconselhou o caralho, me deu foi bronca. “O Centro é perigoso” ele disse. “Vai, vai. Vai tomar seu ônibus. Vai pra casa!”. Não esbocei palavras durante aquele um minuto, um minuto e meio, realmente não sei medir o tempo. Continuei caminhando, o cheiro bom do capim santo. O vozerio novamente, as mesmas piadas, os abanos de cabeça. O moço dos ovos capoeira. A tia das lambretas. Os cheiros. Sorri. Não olhei para trás. Sorri. Estou ficando mais calmo. Menos irritado como minha mãe aconselhou. Não vou surtar, precisar de remédios, falar com profissionais. Eu terei sempre os Mercados Centrais.