sábado, 28 de maio de 2016

A Marca de Caim da República



  • Sem introdução: uma pedrada

Em caso de dúvida, basta realizar uma pesquisa séria sobre a condução do Congresso Nacional nos últimos anos, em termos de atraso nas medidas progressistas, e logo se perceberá que, além das muitas falhas no exercício público da política no Brasil, a chamada Bancada Evangélica foi um dos maus ignorados por nós, que pretendemos uma modificação radical no jogo hediondo que marca as negociações partidárias há séculos.
Não sinto nenhum apego ao exagero ou medo de ser taxado assim, ao afirmar que, ao lado da Bancada da Bala (ex-policiais civis e militares e alguns ex-oficiais das Forças Armadas) e a dos Bois (composta pela aristocracia do agronegócio) os senhores da indústria da fé têm feito um mal tão grande à sociedade que aqueles que fingem não perceber beiram o cinismo hipócrita.
A religião e a religiosidade são um direito evidentemente garantido na Constituição. Mas, principalmente, o primeiro aspecto não deveria – jamais – influenciar no cotidiano da laicidade da República. Um republicanismo aos frangalhos, eu sei, mas, ainda assim, é uma República e, claro, Democrática, até mesmo quando golpista!
O testemunho diário do que fazem os “pastores” eleitos, queira quer não, democraticamente como deputados federais e estaduais e senadores, é um crime que vai além do político, vai além de ferir as estruturas da instituição pública: são crimes contra a humanidade. Cabe frisar que já o faziam em seu espaço de culto, em púlpitos manchados pela mácula do suor do trabalho alheio. Suor não só dos crentes fiéis, mas meu e seu, uma vez que as Igrejas evangélicas não são taxadas com impostos e poucas delas possuem um controle sério de quem pode assumir tal função ou não.
Eu poderia listar aqui o linguajar infame, as referências racistas e homofóbicas, seus projetos de lei que ferem o direito feminino de conduzir os ditames de seus corpos. Poderia gritar aqui o mal maior de projetos que tentam barrar avanços como a pílula do dia seguinte e o direito ao aborto em caso de estupro, o ensino de igualdade de gêneros nas escolas... O ensino sobre as culturas e diversidades religiosas.
Houve um momento em que eu até tentei separar o joio do trigo, buscar uma racionalidade que me ajudasse a compreender os motivos dessa bancada ser e agir assim. Mas, como já dito, esses “pastores” foram eleitos democraticamente. E é justamente isso que não pode nos emudecer na lógica que está profundamente latente aos nossos olhos: Suas ovelhas-eleitores são justamente isso: ovelhas. A urna é um claro matadouro.
Então, o joio e o trigo são uma coisa só num mesmo saco eleitoral de ofertas e dízimos entregues de maneira sincera nas mãos desses lobos. E não devem ser separados. Se não há crítica, há conivência. E a convivência com “bons evangélicos”, com “bons cristãos” apenas tem me provado que lhes falta algo simples: crítica racional. Sua fé sincera se sobrepõe a realidade que nos cerca atualmente. Se sobrepõe às migalhas a que se transformou o sério propósito social. E explicarei, pormenores, essa minha intencional generalização.
Certa vez, após assistir um vídeo de um desses estelionatários pela Internet fui repreendido por um colega de universidade – protestante, se não me engano, Presbiteriano – com a seguinte frase: Ele é assim exagerado, mas é ungido, conhece a bíblia como ninguém. Aquilo me deixou extremamente assustado.
Aquele rapaz possuía uma formação acadêmica próxima da minha, me era e é muito querido, mas, mesmo assim, mesmo com tudo ali escancarado à sua frente, preferiu ser mais um evangélico, protestante, cristão conivente com as atrocidades que são ditas dominicalmente e diariamente na TV por esses salafrários.
Dos  muitos evangélicos que conheço, que ao menos nesse sentido crítico contra o uso da fé como mercadoria são inimigos ferozes das, segundo o termo dito dia desses por um deles, Indústrias Neopentecostais, consigo contar nos dedos de uma mão, os que agem como verdadeiros combatentes contra esse quadro acima pintado: três. Mesmo assim, essas e esses amigos são ainda reticentes para assuntos como igualdade de gênero, liberação do aborto, avanço nas leis contra homofobia, etc. Julgo desigual.

  • Outra pedrada sem preâmbulo e vou mais longe

Deus não abençoa ninguém. Não abençoa sua família. Não abençoa esse país.
Por quê? Simples: deus existe para quem quer que ele exista. Isso é um fato latente. Guarde seu deus para você e viva seu deus ao extremo.
Todorov apresenta uma questão que considero fundamental sobre o que eu afirmei, com dureza, acima. O filósofo e historiador radicado na França, se refere ao projeto das Luzes, ou Iluminismo. Segundo ele: (...) o que se rejeita é a submissão da sociedade ou do indivíduo a preceitos cuja única legitimidade advém daquilo que uma tradição atribui aos deuses ou aos ancestrais; não é mais a autoridade do passado que deve orientar a vida dos homens, mas seu projeto para o futuro. Ainda assim, nada se diz da própria experiência religiosa, nem da ideia de transcendência, nem de tal doutrina moral sustentado por uma religião em particular; a crítica visa à estrutura da sociedade, não ao conteúdo das crenças. A religião sai do Estado sem, no entanto, abandonar o indivíduo (TODOROV, Tzvetan. O espírito das Luzes. São Paulo: Barcarolla, 2008. p. 15 e 16).
Não entrarei na complexa esparrela dos problemas que o Iluminismo trouxe e que, ainda hoje, é ignorado pelo grosso dos doutores. Mas, para os mais antenados, basta pensar no Imperialismo do século XIX e todo o processo – bem cristão, por sinal – de civilidade e igualdade defendida, mas que ignorou outras formas de organização social diferentes da européia naqueles cem anos anteriores de gestação do "projeto das Luzes". Observem que o impacto, no XIX, estava afastado temporalmente da gênese inicial do que combateram os filósofos iluministas, por, simplesmente, um século!!!!
Dito isto, aliás, citado isto, só posso exclamar que a Bancada Evangélica é a Marca de Caim da República e só chegou até esse ponto, sem volta, não ignorem esse fato, pela conivência e estupidez das ovelhas-eleitoras e da má política diária dos governos, tanto de Direita quanto de Esquerda. É uma serpente cujo ovo, todo nós, todos, sem exceção, permitimos ser chocado.
Ora, quando uma criança sai de um culto de Candomblé ou Umbanda e é apedrejada por gente de terno e com bíblia em uma das mãos, é apenas uma prova cabal de que a serpente já nasceu há tempos.
Quando se ignora que as religiões de matrizes africanas são tão importantes quanto o cristianismo destruidor e escravizador que trouxe negras e negros, reis em suas terras, senhores e senhoras de terras, é uma evidência incontestável de que a laicidade não deu certo neste continente brasilis abaixo da Linha do Equador. Ignorar que em uma organização cristã-colonial como foi a que aqui testemunhou-se, na qual cristãos utilizavam trechos dos Salmos para justificar a escravidão negra, uma vez que David escravizava etíopes e, no mínimo, ignorar a História. Finalmente, esquecer que os primeiros habitantes do solo a que chamamos Brasil, os índios e índias, foram privados de sua cultura religiosa e de organização graças ao discurso de salvação da Igreja Cristã é o cúmulo da exemplificação da relação constante entre dominantes e dominados. 
Isso explica porque num país em que se ignora as culturas, é mais do que claro que será impossível perceber o cristianismo como mais um entre tantos outros aspectos culturais até enriquecedores ao ser brasileiro, apesar de seus histórico assassino e destruidor. Entretanto, me pergunto, quem de nós não tem defeitos, mas pode em dado momento corrigi-los?  O cristianismo se manteve no Brasil intacto desde que chegou, sem nenhuma correção: patriarcal, religião de uma minoria dominante imposta aos dominados, destrutiva... Foi assim com o predominante catolicismo que, de pouco a pouco, tornou-se apenas nominal, restando poucos que professam seriamente, e agora o é com a religião evangélica.
Por isso mesmo se hierarquizam erroneamente as culturas nesses grupos religiosos evangélicos. O samba é batuque, as afroreligiões, macumba, etc. Na verdade, por esses e outros aspectos, que o cristianismo se considera além da cultura, ele é o ditame do que é certo e errado. Do moral e do imoral. Mas o que ignoramos é algo tão mais simples: o cristianismo em nosso país e a Marca de Caim.

  • A pedrada final: Volto à ilusão da Direita má e a Esquerda boa/ Da Esquerda má e a Direita boa

Não nos iludamos, associar tacanhamente os neopentecostalismos somente aos movimentos neoliberais ou à extrema Direita (aos moldes tupiniquins) é jogar a sujeita para debaixo do tapete. Motocontínuo, manter o discurso de que os evangélicos nas Câmaras – estadual e federal – e no Senado são heterogêneos demais para que possamos identificar exatamente os inimigos, ora, também é, se não, conivência, algo muito pior: covardia.
O discurso é homogêneo. Se há homogeneidade, isso vai além do ser evangélico, é claro, porém, isso está no entrave silencioso, mas ensurdecedor, das pautas progressivas pelos pastores que ainda se mantém firmes em seus púlpitos sem usar a fé como negócio, mas que em suas latrinas cometem o pecado da soberba por um segundo ou dois, batendo palmas feito macacos aprisionados no zoológico para mais  e mais homossexuais ofendidos e agredidos, para meninas estupradas e sem atendimento adequado, sem o direito de abortarem um feto oriundo da violência machista diária que o cristianismo ensina ao pregar que as mulheres devem ser submissas aos maridos, logo, ao homens. Palmas que reafirmam simplesmente: Se fosse crente, se fosse normal, não seria ofendido ou se estivesse na escola, na igreja, com roupa decente, não teria sido estuprada. O que é ser normal? Desejar dentro de um padrão socialmente construído e imposto? O que é decente?
É tempo, mais que urgente, de se rever os conceitos por todos os lados na busca pela laicidade, não aquela formatadora e que emudeça as formas de religiosidade, mas a que percebe os meandros culturais e de diversidade entre os brasileiros e que justifica plenamente o vídeo abaixo.



  • Post scriptum

O projeto de destruição do país é bem coeso e a sua fórmula , politicamente falando, extremamente racional e mesmo se tratando de forças que podem ser consideradas incompatíveis, o projeto de destruição, via tomada de poder por essas bancadas políticas, pode ser, deste modo, esquematizado:
Bancada Evangélica: Atua no psicológico minando a possibilidade de debate, uma vez que o uso de uma entidade invisível como o deus cristão impossibilita a ação da racionalidade crítica. Como desconstruir o que não se vê? Ao mesmo tempo, os membros dessa bancada firmam suas pautas antiprogressistas na covardia de usarem tacanhamente o direito, garantido, de expressar a fé como liberdade de expressão. Contudo, ignorando que esse direito é de todos, inclusive, dos que não tem fé ou religião.
Bancada da Bala: Uma vez minado o psicológico, atua no estado físico, no direito de ir e vir. Em breve corremos o risco, novamente, da institucionalização – ainda atuante, mas ainda não como lei – do direito à tortura, censura, etc. O modus operandi dessa bancada é ignorar totalmente o humano. Ela age na lacuna aberta pelo Estado ainda que em conluio com esse mesmo Estado que caminha para a teocracia. Possui estratagemas perfeitos que nem Agostinho de Hipona suspeitaria ao elaborar o seu conceito de guerra justa para o Império Romano cristianizado. Por isso mesmo, é difícil esperar algum tipo de embate moral entre as Bancadas Evangélica e da Bala. O passado prova que em algum momento o cristianismo precisa de um braço competente para derramar o sangue dos infiéis.
Bancada dos Bois: O agronegócio funciona historicamente vinculado com o discurso cristão (nosso passado de invasão das terras indígenas e sua catequização é um presente constante) e a ação armada (nosso passado de tomada das terras indígenas através de seu massacre é um presente constante). Ela une perfeitamente as duas ideologias acima listadas. Diria eu, em analogia, que a Bancada do Boi funciona como a concretização da cristianização, logo, alienação do eleitorado “de bem” e da “justiça” violenta e aprovada pelos cegos cristianizados pela indústria da fé. Só que o mais curioso é que essa bancada política, antes a longo prazo, hoje de forma bem imediata, está carregando o país para o fundo do posso e contribuindo profundamente para uma evidente crise ambiental que nos alastra.
Pensem bem, se o Brasil está como está, ainda tendo bem ou mal reservas naturais, que dirá quando suas nascentes secarem e todos os índios forem mortos?

Enquanto isso, continuemos ignorando a Marca de Caim.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

O louco da bicicleta




I’ve got a bike you can ride it if you like
Syd Barrett, 1967

Eu sei que o momento é cuidadoso. Pautas mais importantes preenchem nossa mente e seus parágrafos microscopicamente são analisados pelos nossos olhos. Porém, me permito um momento de distração nessa noite chuvosa em Aracaju e que está me remetendo à minha velha Mesquita...
Às favas! Na verdade, comentar política se tornou uma variável muito difícil de traçar. E como minha garganta está coçando faz uns dias, querendo imitar alguma voz, emitir algum som, decidi mudar um pouco o tom e cantar uma melodia que conheço bem.
Atualmente, um dos muitos – e descontroláveis – problemas, presentes no cotidiano das grandes às pequenas capitais mundiais, diz respeito à mobilidade urbana. O número de carros, por exemplo, numa pequena capital como Aracaju, praticamente triplicou nos últimos anos. No nosso caso, isso deve ser somado a um transporte público deficitário, sucateado, ruas totalmente incapazes de receber todo o fluxo de motos, ônibus e carros e, claro, uma triste cultura capitalista de bens: Ter um carro bacana, do ano, expressa seu sucesso. O trânsito por aqui, não devia, mas é um caos desordenado entre a falta de educação, típica dos motoristas brasileiros, e ausência de espaço para todos.
Para não ficarmos correndo o risco de nos prender ao local e eu correr um sério risco de ser taxado como preconceituoso, tomem nota: mesmo uma cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro, como Mesquita, na Baixada Fluminense, serviria como exemplo categórico do que estou tentando afinar com essa voz um tanto rouca. Ter um carro ou moto por lá expõe a linha tênue entre “necessidade” e “status”. Têm-se sucesso se não precisa pegar um trem, ônibus ou andar de bicicleta!
De fato, a questão é que no Brasil há um grande atraso que, se observado frente aos seus vizinhos mais próximos e grande parte do continente Americano e Europeu, podemos dizer, é até um retrocesso na possibilidade de avanço – vide todas as manifestações contrárias ao movimento de ciclovias, ciclofaixas e ciclorotas na cidade de São Paulo.
Ok, a esse último exemplo devemos juntar a ojeriza pela sigla partidária do atual prefeito da capital paulista que motiva, inclusive, agressões das mais esdrúxulas contra os ciclistas. De todo modo, vale um exercício lógico, sem vestir vermelho ou amarelo: No Brasil, tentou-se resolver o problema da primeira crise econômica, ou a possibilidade de sua chegada ao continente tupiniquim, através do consumo frente produção. Os carros, com seus ridículos IPI’s reduzidos – não quero entrar aqui numa complexa análise do quanto somos lesados pelas multimilionárias fabricantes de automóveis no nosso país e o quanto de impostos pagamos por um carro “popular” – foram o principal bem de consumo adquirido no projeto petista daquele período. A diferença frente os governos anteriores é que a renda, de fato, passou a ser melhor distribuída, principalmente, entre aqueles que estavam à margem mas que, claro, não puderam e ainda não podem comprar um carro.
Um exemplo confiável, que essa relação consumo produção, no nível de automóveis, se limita, sobretudo, à classe média: nos últimos anos, com exceção de dois ou três vizinhos (e eu), todo o meu condomínio trocou de carro. Levando em consideração que são duas torres, com doze andares e cada um deles com quatro apartamentos, tendo algumas famílias mais de um carro e moto, faça suas contas.
A coisa toda, já sabemos, desandou. Hoje, o número de endividados na classe média, seja a mais nova ou a tradicional, é exorbitante. Tanto que numa primeira leva de crise (política) foi ela quem ocupou majoritariamente as ruas e gritou, ignorando sua manipulação via TV e Jornais, Igrejas Neopentecostais e os mesmos partidos de direita de sempre: Fora Dilma! Fora PT! O golpe foi escancarado, as panelas se silenciaram, as camisas da Seleção Canarinho voltaram para as gavetas com naftalina e hoje as dívidas se mantêm. Mais uma vez, a história, que não deveria se repetir, segundo Marx, se repete: a classe média tradicional, e a reboque a nova, entrou pelo cano. O que isso está relacionado com mobilidade urbana e, claro, minha relação pessoal com a bicicleta?

Mas louco é quem me diz que não é feliz
Confesso que do meu escritório posso ver um fio de paisagem que sei que guarda o mar lá no fundo. O bom é que o constante céu azul da minha cidade me ilude que entre nuvens e carcarás, o que eu vejo na verdade é o imenso mar.
Ao mesmo tempo, posso ver também a chuva que vem fina da orla, se misturando às nuvens, acinzentando o azul...
Quando criança em Mesquita, eu fazia tudo de bicicleta: escola, padaria, ir para o campo de futebol, igreja, aula de música, casa dos amigos... Não havia uma rua, ladeira ou encruzilhada em que eu e minha Monark não tivéssemos ido. Dos 11 aos 18 anos era assim que eu me locomovia. Não havia na cidade ciclofaixa, ciclovia, nada disso. Era meio fio e pulando calçada quando dava. Uma vez fui atropelado indo para a escola, numa rua pacata, atrás do antigo Hospital São José. Fui socorrido pelo próprio médico que me atropelou, não sofri um arranhão.
Vim morar em Aracaju por motivos de concurso público, em 2009, e a primeira coisa que me disseram foi: compre um carro, o transporte público aqui é muito ruim. Realmente, era uma loucura terminar as aulas às 22:30 e pegar o ônibus no campus sei lá que horas.
De qualquer maneira, foram as ciclovias – não, eu não comprei um carro, mas ganhei um do meu pai – que mais me chamaram atenção. Vindo da Baixada Fluminense, aquilo era quase um sentimento de me ver criança em Paquetá nas férias de fim de ano. E Aracaju tem isso, tem esse misto de cidade pequena com o caos urbano. Mas, é recheada de ciclovias e ser ciclista aqui, andar de bicicleta aqui – tirando os dias de chuva – não é um exotismo e há até reconhecimento nisso.
Quando vi a chuva de hoje e meus afazeres completos, desci com a bicicleta sem pensar duas vezes. No térreo, só pude ouvir um cochichar de alguém quando saí do condomínio: lá vai o louco da bicicleta. Sorri.
Enquanto o vento e a chuva banhavam meu corpo, minhas pernas se molhavam nas poças e os pneus deslizavam no asfalto, a sensação que eu tinha ao ver as pessoas se escondendo nas marquises, nos pontos de ônibus, era de olhares que diziam: lá vai o louco da bicicleta.
Depois me dei conta que não era preconceito ou reprovação, mas uma reação ao meu sorriso bobo, apesar do corpo encharcado e imundo de lama. Sorri novamente.
O fato é que a cidade parou, não por mim. Mas graças a chuva, as ruas alagaram, carros pararam, se chocaram nas esquinas. Ao meu lado nas ciclovias, trabalhadores voltando da lida com suas capas, certamente, mais sérios do que eu, mais responsáveis que eu, mas não menos compenetrados em seus pensamentos do que eu.
A música soava nos meus fones – talvez, eu nem precisaria dela –, cada piscada era um flash.
Eu disse certa vez e não volto atrás, que ao andar de bicicleta me surge uma crônica por cada cruzamento e sinal fechado, cada cheiro que eu sinto. Para as prostitutas nas esquinas que deságuam a orla, para os travestis da Ivo do Prado, para os maconheiros da pracinha, para as crianças nos brinquedos, para o pessoal do cooper e da caminhada, para mim.
Ao mesmo tempo em que tudo me era alegria e molecagem, pensei muito na mobilidade urbana e no quanto o Brasil perde nas suas idas e vindas consumistas. Não se trata de ser “bicho grilo” ou “novo hippie”. Como eu disse, tenho um carro, uso o carro e entendo bem a necessidade de todos os que veem no veículo conforto e comodidade. Mas é fato consumado que a bicicleta é mais barata e faz muito melhor a saúde que o frenesi do trânsito cotidiano.
O que eu quero dizer, é que não havendo extrema necessidade, deixo o carro de lado, aliás, me coço aguardando essa oportunidade.
Não me lembro quando, mas uma vez assisti uma entrevista de um músico paulistano chamado Curumin. Nela, ele falava sobre uma composição sua intitulada Magrela Fever. Eu já tinha o cd (Japa Pop Show) e, evidentemente, gostava imensamente da música em questão. Porém, quando ele explicou os motivos da canção, confesso que ela se sacramentou como uma oração diária que antecede cada vez que monto na minha bicicleta e saio pelas ruas da cidade, seja para passear, me distrair ou ir para o trabalho. Se você me permite, transcrevo a fala:
Magrela Fever é uma música que eu fiz. É que eu gosto muito de andar de bicicleta, gostava muito de andar de bicicleta na cidade. Assim... Em São Paulo... Num certo ponto, a gente começa a procurar alternativas para escapar da loucura das ruas, né?, do trânsito e tal. E foi uma alternativa que eu achei e que além de me fazer bem, assim, de andar, de poder andar de bicicleta, eu fugia desse trânsito maluco. Então eu estava tão feliz por conta disso, de ter descoberto isso daí, que eu podia fazer percursos longos, ir pra casa, pro trabalho, voltar, ir pro estúdio de bicicleta, que daí eu fiz essa música aqui.
Curumin, em cada verso, cada frase, conseguiu expressar o sentimento tão profundo que é o de se sentir, simplesmente: livre ao pedalar. Pode parecer loucura, mas não é.
E ainda hoje, para muita gente desatualizada, a liberdade é uma loucura... Não para mim e, pelo visto, nem para ele.

Axé, Curumin!

Magrela Fever:

quinta-feira, 12 de maio de 2016

A vida que segue...



Dedico aos meus pais, Alvaro e Cristina.
Para Henrique de Souza Filho, o Henfil.
Para eles, meus respeitos.

Não é a frase que dói, mas a constatação de que a vida de fato segue. Correremos muitos, como críticos de fim de churrasco, para buscarmos a explicação para a vida que segue... e não encontraremos. Apenas cacos de vidros quebrados pelo chão.
Hoje, quinta-feira, manhã seguinte à votação no Senado Federal: Eu liguei para pedir ajuda ao meu pai, respondi algumas mensagens, folheei um livro e pouco li das notícias. Tem sido esse o meu dia.
Fui ao centro e as ruas permaneciam cheias, os carros iam e viam. Não almocei. Entreguei o lixo e o mesmo sorriso do funcionário do condomínio: Boa tarde, Bruno. Ele vai e volta de bicicleta. Casa – Trabalho. Trabalho – Casa. Foi assim hoje pela manhã. Será assim amanhã. Será assim no final do mês.
Logo mais, me sentarei na minha sala – as repartições ainda funcionam – ouvirei as argumentações de uma orientanda de monografia que quer concluir seu curso, assumir algum cargo público de seleção que não há e não haverá por um bom tempo, na esperança de iniciar sua vida, talvez, ignorando que ela começou desde o seu nascimento.
A vida que segue e, certamente, sem a gente saber exatamente os motivos.
Fadados ao desânimo, as contas continuarão sendo emitidas, os direitos pouco a pouco sendo reprimidos diretamente àquela geração, a que faço parte, que jamais sentiu na pele tal situação e me refiro aqui comparando àqueles que viveram durante os anos de repressão da Ditadura de 1964 e que estariam numa mesma posição que a minha agora.
A questão a se colocar, sensível, eu sei, é que se um levantamento sincero for feito com alguém que tenha hoje sessenta e poucos anos e que viveu num subúrbio qualquer do Brasil e que não era vinculada a nenhum tipo de movimento político, sem acesso a educação, pouco recordará daqueles 31 anos de silêncio e torturas. Talvez, justamente pelo silêncio e manipulação midiática. Talvez, pelo excesso de trabalho, pela família a sustentar, pela falta de saneamento básico, pela vida que lhes era imposta.
Ora, hoje o quadro permanece o mesmo: a mídia manipula, o silêncio sacramenta-se e as bocas e barrigas vazias pedem pão. Mães e pais continuam suas jornadas duplas em busca do sustento. A vida melhorou nos últimos 12, 13 anos, e a maioria dessas mulheres e homens associam ao Partido dos Trabalhadores, vide o considerável número de votos nas últimas eleições. Mas, afinal, é via Rede Globo que eles veem o futebol, as novelas, as notícias. Cotidianamente lhes é imposta uma sinuca de bico, pois é essa mesma emissora que manipula de maneira tacanha as informações negativadas sobre o PT.
Eu diria até que para o meu pai e outros trabalhadores que conheço, a vida de maneira automática se amenizará a partir de uma breve possível calmaria... Fico feliz por isso. Sempre vi meus pais batalhando por meu sustento, abrindo mão da própria felicidade. Prefiro que eles sejam felizes. Fizeram escolhas naquele tempo: Trabalho – Casa/ Casa – Trabalho. Mesmo quando tudo melhorou e melhorou, não posso ignorar que a luta diária permanecia a mesma.
Neste momento, seria fácil apontar culpados frente a alienação que testemunhamos: Igreja, Corrupção, Falta de Consciência da importância do Voto Democrático, Mídia etc. Mas, se há falta de mobilização popular, se ela existe como falta, é pelo marasmo que respiramos todos nós. Pois, o povo foi às ruas, aliás, o povo nunca saiu das ruas, das ruas tiram seu sustento, o povo conhece melhor do que ninguém os becos, as saídas das crises, como lidar com a polícia e o ladrão. Lembro-me bem do meu pai chegando cansado, muitas vezes caminhava quilômetros e quilômetros para visitar seus clientes nos subúrbios com a sua pasta marrom e amostras de plastic, não almoçava, vivia uma vida dura para me dar estudo formal, quando a educação estava ali, todo dia em que eu presenciava ele e minha mãe regressando do trabalho.
O fracasso histórico no Brasil está nos pseudointelectuais como eu e meus colegas. Não está em gente como os meus pais. Está naqueles que frequentam butecos populares, quando existiam, com olhar analista-antropológico e se acham vanguardistas conhecedores do popular, pois se mijam após o porre de cerveja ou fumam um cigarro de maconha misturado com bosta de vaca ou compram uma ampola de cocaína do negrinho da esquina misturada com pó de mármore. São risíveis em seus carros importados, parcelados em 60 vezes e em seus apartamentos com decoração artesanal. Pagos com Visa Platinum. Sim, estou puto comigo mesmo. Mas, vale muito uma autocrítica.
Hoje, o futuro pertence aos secundaristas, os que na maioria ainda nem votam, meninos e meninas que têm construído uma consciência política a qual não tive acesso com aulas de Educação Moral e Cívica nos melhores colégios que o suor que os plantões noturnos de minha mãe em hospitais já sucateados naquela época puderam me dar. Essa garotada vem de lugares fodidos, são filhos de um verdadeiro proletariado que trabalha, na sua maioria, em fábricas e lojas de departamento e temem pelo dia a dia dos rebentos enfrentando o braço armado do Estado. É certo que sempre existirão meninas e meninos de famílias abastadas que fogem a regra brasileira de ignorarem a faxineira, o garçom... A luta deles, seu apoio nas ruas aos alunos de escolas estaduais é mais que bem vindo tanto quanto necessário. O problema não está, no fundo, no fundo, em quem é mais rico ou mais pobre, mas na maneira em como os que mais tem encaram os que lutam pelo pouco não lhes chega. Não há luta menor se ela é pela igualdade social.
De qualquer maneira, minha geração foi fadada à titulação, mestres e doutores, e uma substancial parcela não oriunda das esferas oligárquicas. Evoé!
Esse aspecto, brado em bom som, foi obra majoritária do Partido dos Trabalhadores e nele me incluo com um orgulho que não me envergonha.
Mas, apesar das dificuldades enfrentadas para chegar até aqui, nós nos afastamos da prática. Da rua. Da origem. Mesmo as jornadas de junho de 2013, capitaneadas por nós intelectuais-gestores, tem sua origem em movimentos periféricos. Movimentos de gente cansada de sofrer, de ir e vir em ônibus lotados, de serem oprimidas sem o teto para o descanso. Gente que cresceu sendo revistada brutalmente pela Polícia Militar de seu Estado. Mas, eis que os títulos de nobreza, agora um pouco melhor distribuídos entre os pobres, desconfiguraram tudo, ou nós tiramos o seu sentido. Viramos intelectuais de gabinete e quando não, analistas de buteco e de samba de roda.
No fundo, tenho é vergonha de mim. Em muitos sentidos tenho uma ardente vergonha que me remete ao silêncio tácito e que quebro nesse vômito amargo de bílis. E me vem à memória para aumentar meu descontentamento pessoal, uma certa madrugada de desespero, em que assustado com a insônia me dei conta que meu maior medo é que jamais serei um ser humano como foram meus pais. Jamais terei a força deles de me manter de pé com meus próprios pés. Mas, no dia seguinte, com olhos vermelhos de tanto chorar em silêncio na janela que dá para a avenida, pensei: é coisa de momento, tristeza passageira. Usei toda a racionalidade conquistada nos anos de universidade para ignorar o definitivo: a verdade nua e crua que jamais serei como eles e isso me dói. Tenho o rompante de abandonar tudo. Jogar-me no mundo, sumir, parar de escrever. Tornar-me um ermitão num buraco de tanta vergonha. Mas este sou eu.
Na verdade, tudo o que vimos e veremos é muito reflexo do dia a dia, da vida que segue. Do momento. Das pessoas que não tomam a frente no fazer, no arado intelectual. Trabalhadores intelectuais frágeis, em sua maioria, que se escondem nas obrigações de gestão. Como eu. Como você que me lê. É mais fácil o comodismo das conversas de corredores, no cafezinho do sindicato. É mais fácil criticar pelas costas, em surdina ou usar alunos para a velha política egocêntrica de problema psicológico de autorreconhecimento que, talvez, um livro de autoajuda corrigiria.
Tudo é, de fato, reflexo da vida que segue. Do medo de dizer não. Da vontade de dizer sim que não se concretiza. Do medo de discordar de quem está à sua frente. O problema está em nós: está em nos distanciarmos do “cidadão comum” ignorando que somos como ele e testemunhamos, apenas por outro prisma, tudo se acabar na quarta-feira. Nós, de ressaca e com fantasias vermelhas de folião cansado, ele varrendo o chão de nossas serpentinas e de vômito de derrotados. Quem sabe, se pegássemos na vassoura ao seu lado, a coisa não seria como o é.

Mas, a vida que segue...

quarta-feira, 4 de maio de 2016

As trincheiras discursivas, os bunkers de monopensamento e o motocontínuo das batalhas campais




São tantas lutas atualmente que não há como nenhuma pessoa se calar diante do cotidiano brasileiro e mesmo mundial. A Internet se tornou um campo discursivo de batalhas diárias ou mesmo uma pedra de mármore fria e gigante dentro de um necrotério, com corpos enfileirados a espera de identificação. Poderia afirmar que ela é também uma grande enfermaria com índios doentes renegados ao esquecimento ou de soldados feridos que lutaram uma guerra de variadas ideologias ou, finalmente, a Rede é uma grande prisão com detentos tuberculosos, tossindo uns nos outros e contaminando mesmo aqueles que ali foram encarcerados por roubar um naco de pão.
Não importa muito a linha metafórica que seguir, é certo que a Internet nos trouxe de maneira acelerada o contato direto com as muitas campanhas militantes que hoje, para apenas tentarmos organizar um pouco as tropas enfileiradas, diríamos que se dividem em três grandes grupos – porém diversos, muito diversos, em suas composições internas.
Você esperou que eu os definisse. Por um momento me forcei a um silêncio reflexivo na tentativa de elencá-los. Não tive capacidade inventiva de nomear cada um deles. Por isso, chamaremos de A, B e C. Na verdade, defini-los já não me importa muito. A bem da verdade, a Internet nos retirou da inocência do Éden e nos possibilitou o dom de conhecermos o bem e o mal. Dito isto, dado o tom da minha voz, posso prosseguir com ou sem você aqui para me ouvir.
Tenho recebido críticas, há tempos, de ser antirreligioso, arduamente contrário aos evangélicos em suas multifacetadas correntes doutrinárias e avesso ao moralismo hipócrita do catolicismo (aquele que mais salta aos olhos). Talvez, essa imagem tenha sido construída por eu nunca ter negado minhas reticências e temores, por exemplo, ao crescimento das igrejas neopentecostais e o silêncio da maioria dos intelectuais ao ignorarem o discurso de seus líderes e um evidente projeto de poder teocrático. Não preciso me justificar. Mas cabem parênteses e eles sempre são necessários: A sociologia e mesmo um jornalismo mais atento (clique aqui) volta e meia buscam tentar compreender e, consequentemente, explicar este fenômeno que agora tomou mais projeção graças aos discursos – católicos e evangélicos, principalmente – por ocasião da votação da abertura de processo de impeachment no Congresso Nacional, no dia 17 de abril. Mais um adendo: Salta-nos sempre aos olhos os discursos fundamentalistas e de forma rasteira e preguiçosa, colocamos num mesmo balaio todo o grupo de católicos e evangélicos, estes últimos realmente mais difíceis de definir em blocos, como se a fala daqueles deputados e deputadas exprimisse fielmente o pensamento de cada uma das muitas igrejas.
O que não pode ser ignorado, que mesmo para os crentes (católicos e evangélicos) que eu coloco numa lista ímpar de construção de opiniões plausíveis e racionalmente vinculadas ao evangelho e avessos a fundamentalismos e moralismos profundos... Mesmo para essas (poucas) amizades e contatos que tenho, é difícil, muito difícil lidar com questões como legalização do aborto, reconhecimento de famílias fundamentadas em homoafetividade, legalização da maconha, ensino das culturas afro-brasileiras nas escolas, educação de gênero, etc. Sempre haverá a sombra de um deus, cuja retórica do amor se baseia, não nos esqueçamos, em aceitá-lo como único salvador e a tal salvação é condicionada às normativas comportamentais que definem um “bom” cristão.
Encerro a longa digressão e se você ainda estiver me ouvindo... Retomo o pensamento.
Naquele fatídico domingo em que vermelhos e amarelos se opuseram nas ruas das principais capitais da República, estrategicamente localizados em pontos que simbolizam o que posso chamar de bunkers de monopensamento, o grosso dos deputados federais iniciou ou encerrou seu voto, incluindo o declaradamente evangélico presidente da Câmara, evocando o tripé deus (cristão), família (tradicional) e fim da corrupção (de quem?). Houve, é claro, aquele que bradou por Ustra e cito aqui para registro. Nos grupos bicolores é possível identificar claramente cristãos, o que reafirma a diversidade que expus acima.
O processo ainda corre, os impactos são tamanhos, as análises infinitas. Por todos os lados, a artilharia é pesada. A questão é que, a meu ver, e acredito que meus olhos são um tanto caleidoscópios, ali nas casamatas (bunkers, para ficar mais elegante) de monopensamento, foram, uma a uma, abertas as trincheiras discursivas, sacramentadas, ordenadas, nas quais cada um de nós, queira quer não, nos alocaríamos, alguns solitários, com nossas baionetas com pontas esferográficas ou de grafite prontas para o chamado. Eu sei. Certa utopia esta minha. Estamos tão perdidos quanto uma matilha sem referências de onde buscar a caça. Atualmente, os secundaristas demonstram mais organização e coesão política que os doutores.
O último grande impacto sentido nas trincheiras e que como demonstrarei, mais uma vez, é fruto de uma longa e histórica omissão dos tenentes e capitãs diplomados após defesas de tese, é o indicativo do Vice-presidente Michel Temer para convocação de um bispo da Igreja Universal do Reino de Deus para o Ministério da Ciência e Tecnologia – Temer já apronta seu ministério diante da iminente queda, da qual ele contribuiu intimamente, da Presidenta Dilma Rousseff. Essa vinculação política com lideranças religiosas não é nova e exclusividade de Temer.
Ora, Marcos Pereira, advogado, ex-presidente da Record, presidente nacional do PRB e bispo – licenciado – da IURD já aceitou prontamente a função. Está em sua casamata apenas aguardando.
Ouvem-se os primeiros tiros das baionetas, os soldados saem das trincheiras e avançam, mesmo que lentamente, pelo campo de batalha. Estamos todos fadados a uma estanha derrota.
Marc Leopold Benjamim Bloch, medievalista francês que foi morto pelo Regime de Vichy na Segunda Guerra Mundial, escreveu um pertinente livro chamado L’étrange défaite, cujo subtítulo é tão emblemático quanto: Témoignage écrite en 1940. Publicado por esforços ímpares, em 1946, só teve um grande impacto na França em 1990. Paciência, eles também tem suas mazelas. O fato é que das muitas passagens emblemáticas do pequeno grande livro, há uma que eu gostaria de compartilhar com você, felizmente, não por erudição, mas, necessidade, em francês:
Le courage personnel est, chez qui choisit la carière des armes, la plus obligatoire de toutes les vertus professionnelles: si indispensable, en vérité, à la bonne conscience du groupe, qu’il y est de règle de la tenir por allant de soi. Je suis, certain que la grande majorité des officiers de l’active a été fidèle à cette brave tradition. S’il y eut, çà et là, des exceptions – j’en ai connu une ou deux durant la dernière guerre; j’ai cru en retrouver quelques-unes durant celle-ci – elles n’atteignent en rien l’honneur de la collectivité. Elles prouvent simplement que l’habit ne réussit pas toujours à faire le moine, et aussi qu’il est partout des êtres assez dépourvus d’imagination pour adopter un métier sans se représenter à quoi il engage: celui de soldat, par example, sans réaliser qu’um jour, peut-être, la vie de garnison devra ceder le pas à la guerre. Ces faibles sont, au fond, avant tout, de pauvres gens qui se sont trompés. Rest qu’il est, dans le mépris du danger, bien des nuances et des degrés. Mais comment en parler un peu longuement, sans blesser, dans nos mémoires, de secretes pudeurs?
Mas como falar mais longamente do assunto sem ferir pudores secretos em nossas memórias? A omissão jaz justamente nisso. E Bloch apenas é utilizado aqui por mim para ilustrar que o problema conjuntural que enfrentamos é um motocontínuo no campo de batalhas onde abrimos as trincheiras para ou observarmos o combate discursivo ou partirmos delas com baionetas em riste para enfrentar o visível invisível: o modus operandi da governança brasileira. Vale lembrar o caso Daciolo no PSOL.
Há anos atrás, alguns criticaram (movimentos LGBT, principalmente), porém muitos buscaram explicar numa “necessidade de governança e negociação política” para amenizar o fato, a eleição majoritária do Pastor Marco Feliciano para presidir a Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados Federais. O problema se dividia em dois parâmetros: O primeiro, lógico, era o Feliciano, que já havia dado demonstrações públicas de sua linha de combate às lutas por direitos travadas pelos e pelas homossexuais, sobretudo. Em segundo, talvez, o mais complexo, por ser ele um pastor de linha neopentecostal. Neste item, não há de se ignorar todo o trabalho de base realizado, historicamente, por católicos e evangélicos em regiões distantes, levando, a seus modos, saúde e educação. Sim, ainda existem padres e pastores comprometidos efetivamente com movimentos de base e causas sociais muito próximas às nossas. De qualquer maneira, entra aqui um aspecto que ignoramos no constante relativismo acadêmico-crítico: esperar de evangélicos e católicos, seja  de qualquer linha, fundamentalista ou não, que aceitem de maneira plena bandeiras como igualdade de gênero, legalização do aborto e da maconha, etc., é no mínimo solicitar que ignorem suas próprias bandeiras doutrinárias e que os mantém no mínimo de coesão.
Claro, conhecemos alguns. Eu conheço. Mesmo assim, são reticentes, se não, silenciosos. Conhecem muito bem a doutrina e sabem que no fundo, no fundo, incorrem em julgo desigual ao defender a legalização da maconha, por exemplo. As palavras matrimônio ou casamento, quando nos referimos às uniões homoafetivas são escutadas por estes em silêncio e certamente, em suas mentes, versículos do Gêneses passam por sua visão. Faça o teste e afirme: ontem fui ao casamento de duas amigas minhas.
De todo modo, nas trincheiras é possível observar: nos alocamos ora na covardia, ora no combate cego e suicida. Ouço conversas sobre risco que a Ciência e a Tecnologia no Brasil passam a correr sendo entregues nas mãos de um, cito, “criacionista” declarado. Como ficarão pesquisas voltadas para o estudo das células tronco, o ativismo dos teóricos de gênero, etc., etc.? Pensar que tal indicação (e aceite) não influenciará na CAPES, no CNPq e em diversos órgãos de fomentos à pesquisa, já tão sucateados, é apenas observar fumando nas trincheiras por nós mesmo abertas.
Ao mesmo tempo, fechar os olhos ao fato que o problema que se coloca aqui é apenas a ponta de mais um iceberg da nossa política é redigir, sem a mesma eloquência e firmeza que demonstrou Marc Bloch, o depoimento adiantado de um vencido. Sem ignorar nesta minha afirmação que o velho francês lutou até o fim na Resistência, vindo a ser assassinado após prisão. Quantos de nós teremos tal disposição combativa?
O que Michel Temer e seu PMDB conduzem desde o domingo, 17 de abril, apenas para ficarmos com uma data fixa, à parte do fato de não ter sido sequer concluído o processo de afastamento, não foge ao histórico de acordos que marcaram a derrota do governo Dilma Rousseff e o seu PT. O jogo de negociatas de Temer não é diferente de anos e anos de um perigoso vício político que resumo abaixo.
Por apoio, vende-se a alma ao diabo e ignora-se que, assim como deus, ele cobra seus favores.
Que me permita o cansaço dos seus olhos-ouvidos, com mais uma longa citação de um livro. Não posso fugir aos medievalistas que indiretamente me influenciaram em suas reflexões. Área que não renegarei jamais. Minha formação específica junto ao diploma História. Reduto de onde teço com minha baioneta minhas críticas, mas que nunca afirmarei ser mais importante que outro a minha volta. E em tempos em que o tacanho acadêmico, como aves de rapina sobrevoam nossas cabeças e apenas assinalam o ego soturno da autoglorificação, é necessário seu esforço na leitura-escuta:
“Ele existe, o Deus das batalhas. As intenções e a vontade dos homens são presididas pela vontade de Deus, que outorga as vitórias e desencadeia as derrotas. Deus não tem o costume de abandonar as causas justas, nem aqueles que de boa-fé o servem. Se, nesse espírito teológico, tentarmos observar as vitórias militares que constituem o estrecho da história do mundo, encontraremos facilmente o sinal dos desígnos da vontade divina. Há muito pouco espaço entre a vitória e a derrota, as circunstâncias do acaso são por demais mutáveis, a batalha mais promissora pode ser perdida pelo feito de ações insuperáveis: ninguém pode estar certo de que a vontade de Deus se inclina para o seu lado”. Foi o que escreveu um general: Francisco Franco. Em 1964. E no dia 25 de julho de 1971, dia da festa de Santiago de Compostela, patrono da Espanha, rodeado de membros de seu gabinete e de duas dezenas de bispos, ajoelhado diante da estátua do santo, ele volta a falar. Para dizer o que? “Durante nossa cruzada de libertação, constatamos que as vitórias mais decisivas foram alcançadas em dias correspondentes às grandes festas da Espanha. Foi o caso da batalha de Brunete, em que, depois de vários dias de combates infrutíferos, a vitória nos coube no dia da festa de nosso santo patrono. Não pode ser diferente quando se combate pela fé, pela Espanha e pela justiça. A guerra se faz mais facilmente quando se tem Deus como aliado.”
Deus. O dos holocaustos e dos desfiles militares o deus da ordem restabelecida. Esse grande cavaleiro lívido que pairava sobre o campo dos mortos, certa noite, em Brunete, pairava em outros tempos sobre Bouvines. Ele paira também sobre Guernica, sobre Auschwitz, sobre Hiroshima, sobre Hanói e sobre todos os hospitais depois de todos os conflitos. Esse deus, tampouco, parece que não morrerá tão cedo. Ele sempre reconhece os seus.
Assim escreveu Georges Duby, no término de seu O Domingo de Bouvines: 27 de julho de 1214, lançado em 1973. Acredito que não preciso ressaltar quem foi Francisco Franco, mas é sempre bom lembrar... foi um ditador espanhol extremante sanguinário.
Não se esqueça: deus e o diabo sempre reconhecem os seus e na política brasileira, que urge por uma consistente reforma que renove de uma vez por todas o parlamento, essas duas figuras andam lado a lado há tempos.



*Para não dizer que citei errado:
BLOCH, Marc. L’étrange défaite (Témoignage écrite en 1940). Paris: Gallimard, 1990. p. 135. Original de 1946.
DUBY, Georges. O Domingo de Bouvines: 27 de julho de 1214. Tradução de Maria Cristina Frias. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. p. 244. Original de 1973.