Estou no mesmo quarto onde tantas outras vezes estive –
aliás, temo dizer que daqui é que um dia tudo partiu em vozes, gestos
transmutados em palavras.
Cada um se depara com suas memórias de maneira ímpar,
praticamente, única. Seja um velho perfume que remeterá à infância, seja um som
de um pássaro qualquer. A questão é o que tiramos, cada um de nós, de tais lembranças.
Sejam elas nostálgicas ou não.
Na verdade, a bem da verdade, devo dizer que não sei bem
definir o que há em mim de nostalgia, saudade, memória ou lembrança. Já quando
percorríamos na quinta-feira à noite as ruas da velha cidade da minha meninice,
as cadeiras na rua, as crianças desnudas e descalças nas calçadas com narizes
escorrendo ou mesmo os chinelos demarcando o gol a gol interrompido pela passagem
do carro... já nisso eu me perdia na ausência de definição. E digo mais, mesmo
as luzes, as muitas luzes que eu via quando do avião se aproximando no Galeão,
as luzes rompendo a escuridão do céu, mesmo isso, eu não saberia definir o que
significou para mim.
O certo é que isso tudo já estava preparado desde a partida,
o que me resta é entender qual das minhas muitas partidas me refiro.
E veja bem: não é um diário. Mas, espero que você possa me
ouvir, até mesmo o cheiro forte da minha respiração ou o som rouco da minha
voz, a força que faço para tossir. É necessário que me ouça bem devagar, com
bastante atenção. Coisa que eu nunca solicitei. Mas, hoje eu te peço.
Neste mesmo quarto, que pouco mudou, a não ser minha
ausência física, escrevi artigos, uma dissertação, varei madrugadas a finco com
crônicas, poesias, historietas bobas que nem sei mais por onde andam. Aqui
neste quarto quase cultivei o afã de achar que a palavra me libertaria um dia.
Daqui me aventurei pela primeira vez à opinar sobre algo e que foi publicado no
extinto Tramela da gravadora Trama.
Daqui conheci o mundo de uma maneira um tanto singular,
mesmo que o futebol aos domingos, a conversa no portão e as caminhadas no
quintal com meu pai ainda fossem mais interessantes.
Mas se trata de memória e a memória pode ser um osso mal
restaurado. Uma fratura que ainda persiste em doer em tempos nebulosos e de
frio.
É disso que se trata e, talvez, será sempre sobre isso que
cada voz sacramentada a não ser escutada no mundo, mesmo um mundo pequeno, seja
conduzida mal e porcamente por um ventríloquo.
No calor profundo e seco da cidade, enquanto com passos
curtos eu descia o morro de tantas e tantas outras descidas, já quase na
avenida principal, vi uma pichação que marcou profundamente toda a minha recém
estadia quase findada: P/ Escovinha 14 anos de saudades.
Almocei no centro da jovem cidade, passei no boteco
tradicional e voltei com mesmos passos lentos e curtos e pensativos ainda na pichação do muro: P/ Escovinha 14 anos de saudades.
As árvores foram cortadas, o calor aumentou, mas a sujeira e
o asfalto eram os mesmos. O local em que ele foi assassinado, uma vila de casas, foi, há
muito, derrubada para transformar-se no estacionamento de uma igreja evangélica pentecostal, em cuja escola administrada por ela, inclusive, lecionei um breve
período.
Se me perguntarem quem foi o Escovinha, tenho algumas
lembranças e histórias engraçadas e que me remetem a um profundo apego ao
passado no morro e de como a minha própria vida era um emaranhado exótico de
vivências. Nunca soube (ou soubemos todos) o seu nome. Nem sua idade,
profissão, filiação. Era o Escovinha. Magro, franzino e alto. Cabelos muito
crespos e sempre raspados a máquina, arcada dentária desregular... puro osso e
falava fanho.
Sabia meu nome graças a uma escola particular que eu
frequentei para crianças no bairro da Coréia, em Mesquita, e nunca esqueceu. O
uniforme azul quadriculado carregava Bruno
no peito, pintado com tinta para tecidos. Sempre que mamãe subia comigo o
morro, Escovinha sorria e dizia: Coé
Bruno! Minha mãe retrucava: Fala
Bruninho: e aí?
Os anos se passaram, eu cresci, Escovinha mais que eu.
Ele morava onde a urbanização e o saneamento haviam chegado, no pé do morro,
não era asfalto, eram aqueles antigos paralelepípedos que quase não vemos mais.
Recordo dele vir jogar bola no campinho com os adultos um
pouco mais velhos do que ele. Das histórias que ouvíamos das suas atuações nos
bailes funks do Mesquita ou do Tênis Clube. O quanto ele batia, mesmo sendo
franzino e com cara de lerdo. Escovinha era o falso otário. Tinha unhas grandes
que lanhavam a cara dos “inimigos”.
Certa vez, numa noite quente de sábado, provavelmente era
sábado, pois papai me deixou ficar um pouco mais na rua, ouvíamos Antena 1, a
Light FM do Rio, num micro system que eu ganhei de presente e que funcionava com
pilhas. As pilhas comprávamos no rateio, cada um conseguia sua parte como podia
– uns vendiam lata, outros pediam para seus pais, outros roubavam. Um aposto
necessário: Este rádio, que não tenho mais, levou uma pedrada, não sei o
motivo, do Joel Cachaça que, acredito eu, mirava num dos moleques que estava
ouvindo comigo. O Joel era um cara bacana, um bom pedreiro que, inclusive,
quando saí muitos anos depois do meu período de Marinha, trabalhei como
ajudante numa obra de fábrica próximo a Rio Sampa (uma antiga casa de shows
na Via Dutra). As aventuras do Joel Cachaça me renderiam ótimas prosas por aqui
também. Mas, a memória é seleção. Voltemos ao Escovinha.
Na noite a que me referia, Escovinha chegou cabisbaixo e se
sentou na roda de meninos na parte gramada daquilo que chamávamos campinho. O
som tocava baixo e ele em silêncio. Dita hora, alguém soltou: Qual é, Escovinha, o que manda?
O Escova havia arrumado uma namorada num baile de favela e
na sexta-feira anterior havia ido pela primeira vez ao motel com ela. Até aí, a
molecada, incluindo eu, ficou ouriçada em ouvir uma aventura sexual que muitos
de nós só teríamos muitos anos depois. Enfeita para cá, enfeita para lá...
Escovinha decreta: Não rolou. Quando tiramos a roupa. Não rolou. Não ia
rolar mesmo! Um amigo mais velho questionou: Por que?
Era macho! A mina era
macho!
Cada menino da rua questionou frente ao seu próprio
conhecimento da anatomia feminina e masculina mais rasteira possível: Não dava pra sentir enquanto vocês se
beijavam, pô? Não, ela amarrou pra trás! Bom, comia assim mesmo, rapá! E
foi quando o brilhantismo, com o perdão da redundância, abrilhantou aquela
noite que ficou na minha memória: Comer,
comer até dava e até pensei. Mas, ela tinha o pau maior do que o meu e isso eu
não admito! Jamais!
Sentado na sala com meus pais, tantos anos depois, relatando
o que eu havia lido no muro no pé do morro e atiçando a curiosidade dos dois – Quando descermos para jantar me mostra que
eu quero ver – passamos os três a enumerar cada menino da rua que conviveu
comigo e os motivos que os levaram a mortes violentas, fosse pelas mãos da
polícia, dos justiceiros, que originariam no futuro as milícias, ou o tráfico.
Tanto eu quanto meu pai chegamos a conclusão que no caso do
velho Escovinha, ninguém sabia ao certo o motivo. Se por drogas, má companhia,
rixa de baile, não havia isso nos autos da memória, não há ao certo o que o
levou a tomar cada tiro naquela tarde do passado, dentro daquela casa na antiga
vila hoje demolida. Certamente como cada um dos meninos que listamos, a
banalidade da vida. Foram muitos tiros. Caixão fechado.
Não sei também ao certo, tampouco meus pais, se os quatorze
anos grafados com jetcolor no muro ao lado do terreiro que um dia foi a
delegacia de polícia de Mesquita e que eu ouvia o velho Bostinha bradar bêbado
na Barraca do Jorginho, em meus tempos de jogador de búlica com pés descalços,
que ele havia sido preso por xingar o delegado, são de fato quatorze anos ou
muito mais. O tempo nos engana tanto quanto a memória.
A questão é que cada busca que fiz no passado da minha vida,
vejo um corpo ensanguentado no chão que poderia ser ou não de um amigo. Mas que
no fundo, no fundo, me levou junto, sabe lá deus para onde.
Em tempo: A pichação foi feita em 2013. Na verdade, já se vão 17 anos.
Em tempo: A pichação foi feita em 2013. Na verdade, já se vão 17 anos.