sexta-feira, 20 de novembro de 2015

A consciência construída e uma afirmação necessária

O mestre Angenor de Oliveira, Cartola

Os óculos escuros de Cartola
(Letra: Marcelo Yuka/ Música: Max de Castro)

Uma lente negra protege os olhos
Dando chance a outros pontos de vista
Poesia mantida

Poesia cantada

Poesia pichada

Como consequência de vida

Pra que a raiva não nos forme

Com o mesmo peso e medida

O povo pobre faz da arte história

Como os óculos escuros de cartola

Os óculos escuros de Cartola

Eu ouço o eco dessa hora
Sensibilidade a toda prova
Foi-se o corpo
Foi-se o cansaço
Só não foi embora a necessidade
De ser leve apesar
De tanto peso nas costas
Como cerveja gelada depois da obra
Verdades sem moda
Como os óculos escuros de Cartola
Os óculos escuros de Cartola.

Recentemente, numa dessas manhãs cujo peso do tempo, se você permitir, te deixa inerte no chão, eu debatia com meus colegas alunos o velho processo de transição entre o Românico e o Gótico. Uma sala vazia de poucos bons e atentos participantes, janelas amplas que me permitiam ver a luz do sol clareando a grama verde e as idas e vindas de jovens pelo passeio da universidade. Acho que nunca disse isso, mas algumas salas de aula são torturantes quando nos permitem observar que há um vasto mundo de idas e vindas lá fora e ao mesmo tempo instigantes por vermos o movimento da vida correndo.
Naquela ocasião, em especial, eu necessitava arduamente me manter em constante andamento em meu pensamento – não pelo assunto da aula – mas pelo meu estado de cansaço físico e mental de uma longa semana de um mês que parece estar tendo longas semanas de moto-contínuo. Enquanto os sete graduandos acompanhavam minha fala, alguns anotando, outros formulando seus comentários, perguntas ou mesmo pensando na vida... lembrei com certa nostalgia algumas igrejas medievais que pude visitar. Automaticamente, comentei da paz que, apesar dos pesares, eu sentia ao entrar naqueles espaços. Um dos meus alunos pediu a palavra e iniciou um profícuo debate de co-relação, dizendo que havia achado interessante minha fala, pois se recordava que ao visitar uma igreja em Recife ou Olinda (não me lembro agora) com uma amiga negra, o comentário que ela fez foi totalmente inverso ao meu: Ela havia sentido um grande pesar, uma angústia enorme por aquela construção, em especial, ter sido levantada graças ao suor e sofrimento de seus antepassados africanos. Mais do que paz, ela sentiu dor. Por um momento me silenciei, não por vergonha do meu raciocínio ou coisa do tipo, mas processando, primeiro, a sagacidade do comentário do rapaz e, em segundo, a maravilhosa possibilidade que tínhamos naquele momento para discutir História e sua função.
Quando menino, disse eu para turma, passava minhas férias em Paquetá, uma ilha que se localiza, aproximadamente, uns 15 quilômetros do Rio de Janeiro. Lá, passava a infância solto, andando de bicicleta, pescando cocoroca, lendo na biblioteca pública. No Mirante, brincava passando por seus túneis cravados na dura rocha que compunha aquela fortificação de antiga defesa. Naqueles anos nostálgicos da minha infância e pré-adolescência, confessei, nunca no ir e vir correndo, pulando preservativos e merda humana deixadas dentro dos túneis na parte de baixo do Morro do Vigário, ter parado para pensar no que os veios no teto e nas paredes significavam.
Foto de Yuri (Cirulo) - 21 de Fevereiro de 2011

Muito tempo depois, continuei o relato, já adulto, professor de História, visitei com alunos da graduação que passavam o carnaval daquele ano comigo a mesma, porém diferente, ilha e seu mirante. Ao entrar nos túneis um silêncio mórbido em cada um de nós se instaurou e mesmo o belo pôr do sol que beijava a Baía de Guanabara não foi o suficiente para que todos, ao seu próprio modo, sentissem com o tato e com o coração, uma consciência construída de que aquela passagem havia sido perfurada na pedra certamente por escravos africanos arrancados de sua terra por mãos brancas.


Foto de Aquino Neto - 21 de fevereiro de 2011

Não posso falar do sentimento dos meus amigos, mas me recordo ainda agora como as pontas dos meus dedos percorriam a parede e o significado que aquele gesto teve.
Hoje, dia 20 de novembro, comemora-se o Dia da Consciência Negra. Curioso, mas quando eu ainda morava no Rio e subia e descia minha rua, tomava o trem para a Central e convivia constantemente com a visão esdrúxula e doentia do racismo diário que os negros sofrem, nada mais teve tanto impacto quanto o passar os dedos naquelas paredes. Ana dizia hoje pela manhã que, como negra, impressão idêntica a minha no túnel do Mirante de Paquetá, teve ela ao visitar o Cemitério dos Pretos Novos, no bairro da Gamboa, no Rio de Janeiro (para conhecer sobre, clique aqui). Ela tem suas razões. Eu tenho as minhas.
As vozes se misturam e me embaraço. Volto à quinta-feira dessa semana: Olho meu aluno e percebo que transmitimos o mesmo pensamento e temos o mesmo questionamento. Talvez, eu, por menos coragem, transformo em palavras naqueles minutos a pergunta que permearia nos momentos finais da nossa aula, certamente, a construção das nossas reflexões: Eu, ele, sua amiga, e hoje pela manhã, Ana, teríamos o mesmo sentimento de perda, dor, revolta, ou até de reflexão do mal que foi a escravidão negra e as feridas ainda abertas que se mantém e tão amargamente tentam ser apagadas pelo discurso tacanho, sem o estudo da História?
A consciência construída torna-se, a meu ver, uma das afirmações mais necessárias no cotidiano e o mecanismo fundamental para anular o discurso, já absorvido até por alguns negros, de que o caminho é esquecer o debate sobre o racismo, mesmo eu já cometi esse erro, é colocar panos quentes na realidade que nos cerca. Não somos todos iguais. Jamais saberei na pele o que é ser preterido por cor em um país tão multicultural quanto o Brasil. Jamais saberei o que é ser parado na rua e revistado antes do branco que caminha ao lado. Jamais saberei muitas coisas sobre o que é ser negro no meu país. Hoje, mais do que nunca, de minha parte ou da do meu aluno, percebo que não se trata de um sentimento de empatia com a História dos Afrobrasileiros e seus antepassados, mas uma profunda necessidade de luta constante pela afirmação de identidade e da dívida que deve ser paga pelos males que este passado escravocrata tão recente legou ao presente e que permanece se reconfigurando constantemente com o olhar reprovativo quando sua companheira negra sobe para o próprio apartamento no elevador social e é veladamente vista como um empregado que deveria subir pelo de serviço...
Aliás: Quem inventou essa praga de que elevador de serviço é para os prestadores de serviço em condomínios...? Elevador de serviço é para descer com entulho, lixo, seu cachorro para passear!



Ps. Se quiser ouvir um som bom, a voz poética, clica aí embaixo nos Óculos escuros de Cartola:



segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Oxigênio interdisciplinar, poluição acadêmica e as Luzes escuras de um quase Neon



A Internet me ensinou a fazer piña colada. Consequentemente, os resultados foram imediatos: derrubei quase uma garrafa inteira de rum, leite de coco, abacaxis e pitadas de leite condensado para dentro do meu corpo de trinta e dois anos de idade. O drinque puertoriqueño, além de uma enorme azia, me deixou na rede balançando e divagando devagar durante todo o feriadão.
O impacto na disciplina História, de uma revista lançada pelos intentos de Marc Bloch e Lucien Febvre, em 1929, cujo teor político-acadêmico foi bem assinalado pelo francês François Dosse, no final dos anos 80, não pode deixar jamais de ser pensado, é claro. Mas, valei-me deus, praticamente quase 90 anos depois, o ar de “novidade” que muitos dinossauros, melhor, tiranossauros-rex, tentam dar no país dos tupiniquins a ela, fora o exagero ingênuo, tornou-se chato e jocoso.
Hoje, tanto tempo depois, entre o livro de capa amarela do Dosse (1987) e o de capa verde do Burke (1990), ainda prefiro o primeiro (por ser mais crítico). Ainda guardo com cuidado a cópia que fiz do exemplar que o Clodoaldo carregava para baixo e para cima, com muita estima, naqueles anos agradáveis e sonhadores da graduação. Seu irmão era formado em História na mesma faculdade. Assim como eu, Clodoaldo – que mais parecia um fisiculturista – puxava disciplinas aqui e acolá para tentar se formar. Por onde andará Clodoaldo? Da última vez que nos encontramos, ele estava bem, lecionando em diversos colégios conceituados da Baixada Fluminense. Fez nome. Gente fina pra caralho!
Toda a proposta da revista não deixou jamais de ser interessante. Porém, sejamos francos e visigodos, proposta de fundo político e corporativo na academia. Afinal, à História deveria caber o postulado de “carro-chefe” (por que não carro-forte?) das Ciências Sociais, naquele momento, extremamente inventivas e com propostas realmente inovadoras. Pimba! Puta sacada do jovem Bloch e do, um pouco mais, maduro em idade, Febvre. O primeiro, já sabemos, medievalista, lutou na Primeira Guerra Mundial, no futuro tornar-se-á membro da Resistência Francesa, árduo defensor de um interessante ativismo político contra os totalitarismos e acaba morto, fuzilado pelo regime nazista de Vichy. O segundo, poderíamos chamar de “verdadeiro político nas trincheiras acadêmicas”. Colherá os frutos em vida, diferentemente do franco-judeu Marc Bloch. A universidade precisa, certamente, dos dois tipos: Eles não deixam de ter suas qualidades para a máquina do tempo burocrático.
Século XXI. Nunca antes o oxigênio respirado teve em sua composição na Tabela Periódica elementos tão próximos às Luzes multicolores de uma lógica de pensamento de meados do século XVIII. Curiosamente, não sei, o teorema das interdisciplinaridades proposto (absorvido) pelos Annales (a tal revista francesa) para o campo da História, transformou-nos em jovens especialistas esmigalhados, fatiados produtores de análises de uma História em Migalhas, tomando de empréstimo o termo de Dosse.
As mesas de bares e as conversas longínquas com meus amigos, seja num copo suado pelo choque entre a cerveja gelada com o mormaço, que mesmo com todos os alertas climáticos, ignoramos, seja nas viagens balangandãs pelos brasis que teimamos em ignorar com tapinhas nas costas e elogios ao Salami Science, me alertaram para o seguinte veredicto: O oxigênio interdisciplinar está, há muito, perdendo para a poluição acadêmica! Na verdade, num fordismo de artigos e livros compiladores de artigos, o homo producentis ignora o principal: o conhecimento e sua interlocução com a sociedade e os benefícios que isso poderá trazer à todos nós.
Se voltar sua memória chumbada pros percalços de idos de XVII, XVIII ou mesmo do XIX (aí a coisa até começa a descambar), a educação, ontem e hoje, privilégio de poucos, queira quer não, ajudava a formar o individuo para as realidades táteis que lhe eram impostas. A desigualdade, evidentemente, já estava lá. Aliás, a desigualdade, segundo Agostinho de Hipona, será encontrada até na Cidade de Deus. De fato, nisto ele foi profeta, pois o mundo que atualmente é a Cidade de Deus, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, demonstra bem o que o teólogo de Hipona teorizou. Enfim, tome o seu galardão, segura na mão de deus e vá!
É muito preocupante, em todos os sentidos, um jovem ter que se submeter, como me submeti, à norma de modus vivendi que é fatiar, especializar, projetar cada vez mais suas reflexões para apenas uma área de conhecimento. Lógico, concordo com o velho Aldir Blanc – mestre maior: Quem sabe de tudo, não sabe de nada. Entretanto, o gás neon que escurece a vista, nos afasta da Luz, polui por demais o oxigênio que paira no ar e que não há como ser ignorado.
Prega-se nos exames de seleção para ingresso na Universidade, o uso combinado dos mais variados discursos – tecnológicos, de humanidades, etc. – e após essa etapa, mal cumprida por sinal, nos cerram no hermético calabouço da grade curricular com obrigatórias e optativas (que são obrigatórias disfarçadas) disponíveis ao vento, sabe-se lá quando.
Falta-nos tudo.
A interdisciplinaridade, e essa fala não vem de um bêbado, vem de um especialista dentro de uma especialidade exótica no país, é como um unicórnio ou um pote de ouro no final do arco-íris.
Os concursos públicos se tornam cada vez mais escassos e, quando não, corporativistas. Quando se vê um currículo vitae variado, encara-se mal o profissional em que foi investido tempo e auto-tempo para que, ele mesmo, chegasse naquele momento de prova(ção) – nada mais ingênuo e teatral que um concurso de Provas e Títulos. Se bolsista, impostos foram ali, muito restritamente e quase como doação, investidos. Se não bolsista, dinheiro de trabalho, de sapos engolidos, para uma boa preparação em línguas, pós-graduações e afins. Não se percebe o quanto temos poluído nosso espaço de trabalho e convívio nas Universidades. Locus por si só, de uma áurea pesada e de dar náuseas. Olha-se com desdém quem pretende em algum momento ir um pouco mais além do que os meandros das páginas escritas para si mesmo de uma dissertação ou tese.
É claro que as especialidades, o stricto sensu, é um caminho historicamente reconhecido (e necessário). Não brado aqui que no especialista se deposite toda a culpa intelectual do mundo. Jamais! Seria cuspir num prato que eu mesmo preparo e degusto diariamente. A questão é outra. Ela se fundamenta no simples fato de percebermos que a interconexão, a interlocução deve ser cada vez mais temáticas nos Colóquios, Simpósios, Seminários. Há matemáticos, médicos, físicos que tem muito a dizer para filósofos, medievalistas, brasilianistas, colonialistas, etc. e sempre o vice-versa.
A técnica, inerente a cada campo de saber, se conquista pela prática. Jamais serei um bom médico. Mas, posso ser um bom historiador da medicina (inclusive da Medicina Medieval). Jamais serei um bom Arquiteto, mas posso ser um bom historiador da arquitetura colonial. E a roda segue. E segue e segue e segue.
Enunciados como poder, estado, violência, política, cultura, identidade, etc., iriam se tornar mais abrangentes, suscetíveis de análises teóricas e críticas práticas, o que providenciaria ao cotidiano social uma coisa muito simples dentro do postulado das complexidades: respirarmos o ar das interdisciplinaridades.
Seria interessante preenchermos de uma vez por todas o fosso, amenizarmos a lacuna, construirmos uma ponte para ultrapassar o abismo que jaz entre a graduação e a prática cotidiana dos bacharéis e licenciados que são formados ano a ano. Quem sabe para os concursos a saída não deveria ser temática? A cadeira de área X pretenderá um docente-pesquisador que pesquisou sobre X e suas variáveis aproximativas. As grades, com direito às barras de ferro e tudo, ainda estarão lá, intocáveis por enquanto, mas, como sempre, a prerrogativa da escolha se manteria em nossas lisas e delicadas mãos sem calos.
Nossas feridas são outras. E foi na sua fina casca que eu quis mexer. Se é que ensaiei uma coceira na garganta aqui ou acolá. Quem saberá?



Para sair do meu provincianismo discursivo, os livros a que fiz referência tratam-se de:
*DOSSE, François. A história em migalhas: dos “Annales” à “Nova História”. São Paulo/ Campinas, SP: Ensaio/ EdUnicamp, 1994. [Original francês de 1987]
*BURKE, Peter. A Escola do Annales (1929-1989): A revolução francesa da historiografia. São Paulo: Editora UNESP, 1997. [Original inglês de 1990]