Queria dizer, e já
dizendo, que a cada dia que passa, mais me surpreendo com a complexidade dos
valores moralistas que se constroem constantemente à minha volta e que, volta e
meia, me atingem diretamente o fígado, que é a alma. Por isso, me posiciono: Sou
a favor da legalização do aborto e da maconha.
Consequentemente,
o modelo tradicional/ocidental de “religião” me assombra. Grito aqui, sem medo
de cuspir em algum prato ou ter meu teto de vidro despedaçado: sempre me
assombrou.
O mais curioso é
que nunca tive uma educação familiar que me obrigasse a professar uma fé, um
posicionamento político ou coisa do tipo. O discurso até os meus dez anos era
muito simples: havia valores educacionais e de trabalho igualitário na minha
casa que, por sorte, construíram diariamente meu caráter, e todo e qualquer tipo
de posicionamento que eu tomasse era e é respeitado pelos meus pais. Assim,
pude frequentar uma vez uma missa, ir a terreiro de candomblé, ubanda, igreja
evangélica, pentecostal, comer doce de São Cosme e Damião, tomar sopa dia de
sábado em Centro Espírita e até mesmo visitar orfanato com professores da
escola em que estudei entregando donativos para crianças como eu.
Um dia a coisa
mudou e não sei por que cargas d’água houve um enfraquecimento em mim no
quesito “ética laica”. E isso, de quebra, levou meus pobres pais-liberais para o
mesmo abismo da culpabilidade, principalmente mamãe que sempre foi de uma
clareza fantástica de ideias, amiga do mais variado tipo de pessoas,
consideradas pelo moralismo fundamentalista cristão, que a cada dia cresce mais no país, como “desviadas”.
Participar de um
corpo religioso sempre me foi uma dúvida pelas muitas dores que, mesmo inserido
e absorvido no corpo religioso, eu sentia, fosse após um dia de festa no
terreiro da Dona Iraci ou numa reunião no Salão do Reino dos Testemunhas de
Jeová. O discurso não atendia profundamente minha necessidade de viver e
conviver com o externo: meus amigos de pais divorciados, o amigo de escola cuja
família era ele, filho único, sua mãe biológica e sua companheira (um casal
maravilhoso e lésbico que me tratava com um carinho enorme), etc, etc. Mas
nenhuma instituição religiosa me causou mais dor e sofrimento do que a igreja em que fui batizado e frequentei constantemente na minha pré e adolescência.
A instituição
religiosa e cristã e protestante (que paradoxo este último termo) reproduzia e
se fundamentava nos mesmos moralismos excludentes que eu via na escola, na rua
e nas esquinas por onde eu passava no meu dia a dia. Aquelas pessoas, que
convivi até então nos meus dez anos de idade, tornaram-se “desviadas”, “criaturas
de deus”. Passaram a necessitar da “salvação em Cristo”, eram “do mundo”. Eram “diferentes
de mim”. Essa foi a primeira grande dor que senti: eu deveria orar por aqueles “perdidos”
que “viviam fora do núcleo verdadeiro da felicidade e do correto”, logo, “estavam
fadados à perdição”, precisavam da “conversão” para “tornarem-se verdadeiros
filhos de deus e não mais criaturas”.
Clamava-se pelo
caminho da “santidade” entre tropeços sôfregos, justificativas fundamentadas na
esperança, crença no invisível-visível, na vida eterna em Cristo Jesus, nosso
senhor. No fundo, o controle social interno da corporação de candidatos a
homens e mulheres de bem a caminho da perfeição-salvação se dava por meio da
construção do simplório sentimento de “culpa”. Isso mesmo: culpa. Não se
engane, a roda gira graças à culpa. Depois (um depois de passado, antes de
mim), surgiu o fantástico discurso neo-pentecostal da prosperidade-riqueza, quase um deus vult do capitalismo. A fórmula medieval de “doe e
você receberá em dobro” se adequou perfeitamente às pessoas de baixa renda e que depositam e depositaram toda sua fé no milagre divino-financeiro. A
roda do capitalismo nesses moldes, nem Weber esperaria com tanta perfeição. Pois
é, entre 1904 e 1905, quando do lançamento de seu famoso livro, não havia vocês
sabem quem para ele analisar! Voltemos à culpabilidade. E que volte algum Max Weber para colocar de maneira mais erudita que a minha, o dedo nas chagas da cruz!
Era culpa porque “o
filho de deus”, “o próprio deus” morreu num madeiro por um pecado que você nem
tinha cometido, mas ele sabia que você um dia ia ter o azar de professar,
afinal ele sabe de tudo antes mesmo de você saber que vai fazer. Era culpa pelo
cine prive que só mostrava bunda e peitinho nas madrugadas da TV Bandeirantes e
a punheta da noite anterior à “escola bíblica dominical”. Era a culpa pela
vontade de comer a menina do banco da frente que tinha culpa porque queria ela
também comer você. Era até a culpa de saber que você não comia ninguém, mas
havia uns tantos cantores de coral que fodiam e você não! Enfim, não vamos
culpar ninguém, já há culpa demais. Afinal, o importante era pedir perdão e
essa lógica alguns pegavam rapidamente: então, piroca na vida e depois você
pede perdão!
Em dado momento,
uma importante guinada, ao menos para mim, aconteceu: Cada vez mais, tudo à
minha volta fazia menos sentido: os tapinhas nas costas por uma bela poesia
cristã, um “abençoado” por uma letra de música ou uma peça adolescente de
teatro. Um “aleluia” por uma reflexão retórica à um trecho bíblico, etc., etc.
Fui acometido no melhor da vida de uma depressão que diziam ser de fundo espiritual, “a
chama da fé já não estava ardendo”, eles diziam. No fundo, o que eu via era a
culpa depositada onde não há culpa. Logo, todas as minhas namoradinhas eram “jugo
desigual”. Graças a deus!
Os remédios surgiram e que não deixam de ser drogas. Precisava deles para dormir, acordar, sorrir,
andar de bicicleta, jogar bola, estudar. Uma vida tosca. Onde eu estava errando? Eu nem olhava e
olho com maus olhos as pessoas que evidentemente estavam contentes, felizes na
fé. Eu só passei a perceber, simplesmente, que aquilo não servia para mim o tanto
que servia para cada uma delas. Aquele “corpo religioso” não conseguiria
comportar a minha alma e meus anseios como cidadão, ser humano, pessoa,
individuo. Eu queria ter amigos, amigas. Ter perto de mim gays, lésbicas, maconheiros ateus,
agnósticos tucanos, petistas do candomblé... católicos viados, putas
evangélicas, enfim, eu queria era ser livre de culpa religiosa. Veja, deve ser
bom e deve mesmo ser bom para um monte de gente: mas não é para mim. A lógica é
racional e bem simples.
Conversei com meus
pais naquele período sombrio e a ideia foi maravilhosamente aceita por eles,
sempre tivemos amigos que frequentavam a nossa casa e trabalhos e que se enquadravam
em algum momento nessa sintética e livre definição acima.
Passei a pensar
que era bem mais leve e alegre conduzir minha vida novamente a partir de uma
ética que procurasse acima de tudo não ferir a minha individualidade e a
alheia. Não era uma filosofia de vida ou coisa do tipo, era a única saída que
eu tinha para viver. As drogas receitadas diminuíram.
Aos poucos, a
atitude também foi tomada pelos meus pais, a família se uniu ainda mais, as
conversas, que sempre foram abertas, sobre sexo, drogas ilegais, álcool, rock and
roll, ficaram ainda mais abertas. Até hoje não matei ninguém, estuprei, roubei,
furtei ou qualquer outro tipo de atividade que fira os preceitos de direito
universal, incluindo, a liberdade religiosa que cada individuo, por lei, tem.
Apenas não tenho mais uma religião e não me insiro na institucionalidade de
nenhuma delas, mesmo entendendo que, para elas, a necessidade de se institucionalizar
é latente. Eis o problema para eles e para mim.
Recordo com certa náusea,
confesso, de que quando entreguei formalmente minha solicitação de “exclusão do
rol de membros da Igreja” – formal isso, não? Quanta institucionalidade para a
fé! – o pastor, um senhor agradável que ainda guardo com um enorme respeito e
carinho, soltou a máxima: “As muitas letras te deixaram louco”. Citação paulina,
ele era muito bom nessas coisas. Eu estava cursando graduação em História.
Acho que anos
depois, seu filho, que também tornou-se um ministro e não deixava de ser um bom
amigo, numa conversa informal quando eu disse que havia terminado um
relacionamento (que era jugo desigual, até então) de uns quatro anos, para ficar com uma paixão que me surgiu de
repente, disse: “Mas, ora, sem igreja, religião... quais serão seus fundamentos
morais e éticos para conduzir sua família, sua vida?”. Curiosamente o discurso do desigual sumiu na nova realidade.
Acredito que essa
voz-desabafo de hoje e cada luta diária que travo pela laicidade no Estado e no
Ensino, uma laicidade que permita o conhecimento pleno de toda e qualquer
manifestação de religiosidades, explica bem quais os fundamentos morais e éticos
que eu, brasileiro, servidor público federal, filho, companheiro e amante e, acima
de tudo, livre e sem culpa, sigo na condução da minha família não tradicional.
Uma família que se propõe de forma veemente a não se enquadrar nas normas
institucionalizadas por um governo que tem se vendido cada vez mais à Bancada
da Bíblia no Congresso Nacional.
Sou a favor do
direito da mulher abortar e ser amparada pela lei em sua vontade individual de
praticar a interrupção de uma gestação dentro dos prazos regidos pela Medicina e conforme dados da Organização Mundial da Saúde. Sou a favor do uso livre da pílula do dia seguinte em conformidade com
o direito individual da mulher de ter o controle de seu corpo, enquanto
individua e cidadã, principalmente, se for ela vítima de violência sexual e não
só. Sou a favor da legalização da maconha, sua produção de qualidade, venda em
locais específicos e o uso individual e coletivo de forma recreativa como
fazemos com o álcool e o tabaco. Sou a favor do matrimônio de casais de mesmo
sexo e dos os direitos legais que disso decorram. Sou a favor da adoção legal
por casais de mesmo sexo. Sou a favor da liberdade religiosa e de toda e
qualquer manifestação cultural de religiosidades. Sou a favor do individuo
inserido na coletividade do que deveríamos chamar de nação brasileira. Sou até
mesmo a favor da presença de religiosos no Congresso, desde que eles não firam
a nossa individualidade.
Axé, amém e viva o
azul.