sexta-feira, 6 de março de 2015

Para o Alexandre Moraes

            Antes que me acusem de ter transformado as vozes d’O Ventríloquo num derramamento de profundo pieguismo sentimental ou uma esparrela de tons, sobretons e panegíricos dóceis, eu queria dizer que não se trata desse tipo de coisa.
            A roda da vida gira numa velocidade que não consigo medir. Na verdade, eu queria mesmo era falar um pouco sobre o Joe Cocker desde que ele faleceu no dezembro passado.
Mentira. Eu queria era falar sobre o documentário/show Mad Dogs & Englishman lançado originalmente como um LP duplo e nos cinemas como um filme, no ano de 1970. Eu queria abordar os músicos ali presentes, cuja trajetória já havia sido travada pelo tempo, como, por exemplo, o saxofonista Bobby Keys que faleceu, pouca gente sabe, alguns dias antes de Cocker e que no tal documentário, num passeio chuvoso de carro pela mesma avenida em que Kennedy foi assassinado, em Dallas, nos presenteia com um dos diálogos mais interessantes e pouco explorados no filme: O abismo de gerações. Mesmo a solidão do Joe Cocker após as apresentações, um misto de homem desprotegido, algumas frases e olhares muito me chamaram atenção quando revi recentemente instigado, justamente, por sua morte e pelas muitas homenagens que surgiram na Rede. Confesso que dele possuo apenas a edição delux, em cd, do LP ao vivo da tal turnê e o documentário. Para não soar mentiroso, tenho uma velha coletânea que comprei ainda na graduação.
            Parágrafo longo, a conversa, a minha conversa se perdeu. A conversa sobre o documentário ficou por aí, na mente.
O tempo foi se tornando escasso no último mês e mais ainda nas últimas semanas. No entanto, li, quando “jogado”, não sem delicadeza, na Rede, um texto que achei bem bacana no Para Ler Sem Olhar, intitulado Oliver Sacks de 5 a 7. Não que o que relato aqui tenha referência direta ao texto do Viana, mas, me deu uma liberdade a mais para sair um pouco da tentativa de ser profundo como ele que, por exemplo, sempre acerta em seus textos por ali (aliás, faço aqui propaganda daquele espaço). Me impressiona a regularidade e mesmo o nível intelectual do que ele compartilha conosco que acompanhamos seus escritos naquele blog. Mesmo seus textos mais pessoais (não que eu ache ou fique nos achismos de pensar que existam textos que não são pessoais) são tão analíticos e profundos quanto os explicitamente voltados para análises políticas, econômicas, culturais, etc. Mas, isso é outra história. Sendo assim, isso aqui, o hoje, é um misto de várias coisas. Introdução longa.
Falarei sobre o Alexandre e sobre o que do Alexandre me fez escrever aqui, mesmo que agora, na distância, eu consiga, mal e porcamente, organizar as coincidências da vida que me fizeram dizer o que digo.
    Conheço, se é que conheço, se é que conhecemos alguém, o Alexandre há quase dez anos. Estudamos juntos durante algumas disciplinas obrigatórias no Mestrado que cursamos na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sempre me chamou atenção, mais do que dos outros colegas, o grau de inteligência que ele apresentava em seus comentários, suas críticas e a maneira como se colocava, sem medo, nos debates que surgiam naquela disciplina. Ali se apresentava o que se concretizaria, melhor, o que se concretizará no decorrer dos próximos anos: Uma certa geração com seus 30 anos que tem pensado, agido, refletido, em algum momento, sobre nossa sociedade no tempo e no espaço – próximo ou longe nesse mesmo tempo e espaço. Ou seja, sem medo do peso arrogante que a palavra tomou, uma nova geração de intelectuais que, de alguma maneira, tem atuado, por exemplo, no espaço universitário.
            Alexandre é Professor de História Antiga na Universidade Federal Fluminense, foi aprovado num certamente de grande concorrência na vaga gerada pela grande perda que foi a morte do Ciro Flamarion Cardoso. Enfim, isso diz algo ou não diz nada. Diria muito ou muito pouco. Isso nada interessa ou interessa muito. Pode ou não. A questão não é essa. A coisa aqui é outra. Então, os meandros de sua carreira universitária não nos importa muito. Importa, talvez, por exemplo, certa vez em Salvador, sua simplicidade bebendo cerveja comigo madrugada adentro junto com alguns orientandos meus e a boa impressão que ele deixou para os mesmos e a confirmação do que eu sempre dizia e digo para os alunos que trabalham ao meu lado com pesquisa: Os melhores aprendizados acontecem em momentos de mais puro prazer intelectual: na mesa do bar, na boemia, na madrugada.
            Há quase um ano, me lembro dele me informando que ia ser pai. Na cautela racional que sempre apresentou, avisou de forma taxativa: “só não divulga, pois sabe como é, os primeiros meses são sempre complicados numa gestação”.
Tenho por característica quando alguém me pede segredo, não informar nem mesmo a deus. Às vezes até esqueço o que me contaram. Desde criança tenho esse problema ou virtude. Não sei explicar.
            Seu filho Gabriel nasceu com saúde, na mesma época ele foi aprovado em concurso público e a vida seguiu em passos largos, não sem dificuldades.
            Novembro passado, encontrei Alexandre num evento acadêmico no qual os dois fomos convidados em nossa antiga instituição de formação para, além de avaliar trabalhos de mestrandos e doutorandos em nossas áreas de especialização temática, ministrarmos uma pequena palestra sobre o que vínhamos pesquisando em nossas universidades. Evidentemente, os horários eram paralelos e não pudemos nos assistir. Mas o que ficou desse encontro recente com meu amigo de época de pós-graduação foi uma conversa pela manhã, antes das atividades se iniciarem, e que guardo na memória com muito carinho e registro aqui com muito zelo e profunda admiração.
            Diferentemente de todas as pessoas com quem já conversei que são pais recentes ou de primeira viagem, ou pais há mais tempo, ou profundos defensores da paternidade/ maternidade, Alexandre respondeu minha pergunta educada de “como vai o moleque?” com a naturalidade e simplicidade de que lhe são características: “Rapaz, o moleque vai bem, cai pra baixo e pra cima. O que mais faz é cair. Mas está numa fase muito legal de se reconhecer como gente. De se olhar no espelho e se perceber”. Não sei por que cargas d’água nós entramos no tema “animal de estimação”. Creio que fui eu, não sei, talvez, muito talvez mesmo, por me sentir um tanto deslocado na coisa da coisa de “ser pai”. E sabendo que o Alexandre antes de ser pai é dono de gato e cachorro, me senti próximo nesse tema e puxei, associando ao Gabriel, como ele lidava com a presença dos bichos em casa com uma criança em franco crescimento físico e psicológico.
            Alexandre riu e contou as peripécias do rebento e sua relação com seus animais: “Tudo na mais tenra ordem louca”. Confesso que às vezes me assusta muito sua racionalidade, basta ler os seus textos-opiniões no seu mural do Facebook sobre política e mesmo amenidades. Infelizmente, o Alexandre não possui um blog, mas tudo lá é público, então vale a pena dar uma conferida, mas deixo aqui minha reclamação formal: ia ser muito legal se o Alexandre tivesse um blog. Enfim, com sua velha e conhecida maneira lúcida e racional de falar, mas sem perder o maravilhoso tom de moleque de Campo Grande, aquela coisa que só quem conhece a Zona Oeste sabe, bradou: “Porra, fico impressionado com a diferença gritante entre cachorros e gatos. O primeiro come o próprio vômito, a merda, é sempre bobo e fiel na sua dedicação quase triste ao dono. O gato não, o gato está ali, sempre muito imponente, limpo, sagaz”. Evidente que as palavras transcritas são chulas paráfrases que eu nem devia me aventurar a colocar entre aspas dos sons que saíram da boca do Alexandre, mas, ele que me perdoe ou vá se foder, pois O Ventríloquo é meu e não dele. Mas, foi mais ou menos esse o conteúdo de sua fala.
            Eu na minha humildade e um certo ar constrangido fui comentar sobre o meu gato Gregório, o apego que tenho por ele, como lido com o bichano, relatei um porre que tomei e quando bêbado sentado no chão da sala dei a chorar quando olhei para ele olhando para mim. E dei a bradar: “Um dia morrerá, pobre Gregório. Um dia você morrerá! Puta que pariu, você morrerá!”
            Alexandre riu. E ríamos. Quando perdi um pouco a vergonha, perguntei na mais juvenil curiosidade: “Você não acha meio irracional minha atitude? Comecei a me achar mais sensível a tudo à minha volta: pessoas, animais, água, planta...” E ele: “Não, ao contrário. Ter um bicho de estimação me deixou muito racional. Ser pai é que me deixou irracional!”. Aquilo me assustou pela severidade da frase e não pude silenciar, afinal, eu e Alexandre temos a mesma idade e apenas meses nos separam e era a primeira vez que eu ouvia um pai, ainda mais de primeira viagem, me dar uma resposta que mais se aproximava do que eu pensava e tentava argumentar com todos os “pais babões” – não que eu não vá ser um dia um “pai babão” também –, mas que no capital simbólico de “serem pais” e “você não” sempre me apunhalavam: “Você não entende. Você não é pai”. Alexandre explicou:
“Ter um bicho de estimação me deixou mais racional. Eu sacrificaria meu animal se por ventura o visse sofrendo e sem a mínima solução, isso seria o racional, o mais correto a se fazer. O Gabriel me deixou irracional no sentido de que penso mais com o coração. Recentemente – ele relatou um dos tombos do filho – ele caiu e bateu a cabeça. Fiquei um tanto desesperado e eu e minha esposa ficamos na dúvida de fazer ou não uma tomografia numa criança tão pequena e o excesso de radiação na cabeça do nosso menino. Tivemos que buscar no fundo da mente uma racionalidade que nos fizesse colocá-lo diante de um mínimo, porém, eminente tipo de risco. Fiquei ligando constantemente para a pediatra, monitorando, ficando sem dormir. Ou seja, parece racional isso, mas no fundo, não é tanto. Pois estávamos quase neuróticos por causa do tombo”.
O evento iniciou, o evento terminou. Nos sentamos os dois no Amarelinho, vendo quem ia e vinha, bebemos uns muitos chopes, depois cada um foi para o seu lado: Eu fui beber mais chope em Botafogo antes de pegar um voo no Santos Dumont, Alexandre voltou para a rotina da paternidade.
Meu gato agora mesmo subiu na minha perna, bateu com a pata no meu braço e miou. Me chama para algo que não sei: deve ser para correr atrás dele, vê-lo comer, limpar sua caixa, não sei. Não mio, não falo a língua dos gatos. Fico pensando que o Gabriel deva agora estar andando, dando passo a passo, o Alexandre e sua esposa rindo, olhando, observando. Logo ele falará nossa língua, xingará como o pai, defenderá suas próprias posições políticas, debaterá num mundo em que eu e o Alexandre em nossas aulas lutamos para ser melhor. Me parece ser um bom pai. Me parece que ajudará a educar ao lado de sua esposa um bom cidadão. Tudo me parece. Meu gato desistiu e foi embora do meu escritório. Deitou na porta. Eu não faria isso com o meu filho: acho que eu largaria tudo e ia ver o que ele queria.
            Ontem ele entrou em contato comigo via Facebook solicitando um e-mail de um professor. Comentei sobre nossa conversa, a de novembro. Sobre esta de agora e sobre tantas outras conversas. Rimos um pouco. Falei do impacto do que ele disse naquele dia e que iria colocar isso no papel ou num papel metafórico. Ele riu. Eu disse que muitas vezes ouço de conhecidos que são pais, recentes ou não, frases do tipo: “Sua vida só terá sentido quando tiver um filho” ou “Sua vida terá um objetivo maior.”. Sempre achei e continuo achando que minha vida tem um objetivo desde que nasci, independente de ter ou não, ajudar ou não a por outra vida no mundo que, sejamos sinceros, não é mais lá um mundo muito digno de ser vivido. Comentei que muitas vezes eu achava piegas, apesar de entender todo o amor envolto às crias, esse tipo de afirmação. Alexandre riu e disse, aqui o cito ipsis litteris: “É piegas mesmo. Eu acho que filho não dá sentido pra viver. Acho que dá sentido pra não morrer... Que tu fica pensando: “Caralho, se eu morrer e esse filho da puta precisar de mim?”."
            Eu precisava voltar ao trabalho, ele também. Nos despedimos. Pois a vida é, no fundo, despedida mais do que chegada.
            E acho que o Gabriel aprenderá muito bem isso com os pais que tem. Seja bem vindo, moleque, mas não esqueça o até!