sexta-feira, 20 de novembro de 2015

A consciência construída e uma afirmação necessária

O mestre Angenor de Oliveira, Cartola

Os óculos escuros de Cartola
(Letra: Marcelo Yuka/ Música: Max de Castro)

Uma lente negra protege os olhos
Dando chance a outros pontos de vista
Poesia mantida

Poesia cantada

Poesia pichada

Como consequência de vida

Pra que a raiva não nos forme

Com o mesmo peso e medida

O povo pobre faz da arte história

Como os óculos escuros de cartola

Os óculos escuros de Cartola

Eu ouço o eco dessa hora
Sensibilidade a toda prova
Foi-se o corpo
Foi-se o cansaço
Só não foi embora a necessidade
De ser leve apesar
De tanto peso nas costas
Como cerveja gelada depois da obra
Verdades sem moda
Como os óculos escuros de Cartola
Os óculos escuros de Cartola.

Recentemente, numa dessas manhãs cujo peso do tempo, se você permitir, te deixa inerte no chão, eu debatia com meus colegas alunos o velho processo de transição entre o Românico e o Gótico. Uma sala vazia de poucos bons e atentos participantes, janelas amplas que me permitiam ver a luz do sol clareando a grama verde e as idas e vindas de jovens pelo passeio da universidade. Acho que nunca disse isso, mas algumas salas de aula são torturantes quando nos permitem observar que há um vasto mundo de idas e vindas lá fora e ao mesmo tempo instigantes por vermos o movimento da vida correndo.
Naquela ocasião, em especial, eu necessitava arduamente me manter em constante andamento em meu pensamento – não pelo assunto da aula – mas pelo meu estado de cansaço físico e mental de uma longa semana de um mês que parece estar tendo longas semanas de moto-contínuo. Enquanto os sete graduandos acompanhavam minha fala, alguns anotando, outros formulando seus comentários, perguntas ou mesmo pensando na vida... lembrei com certa nostalgia algumas igrejas medievais que pude visitar. Automaticamente, comentei da paz que, apesar dos pesares, eu sentia ao entrar naqueles espaços. Um dos meus alunos pediu a palavra e iniciou um profícuo debate de co-relação, dizendo que havia achado interessante minha fala, pois se recordava que ao visitar uma igreja em Recife ou Olinda (não me lembro agora) com uma amiga negra, o comentário que ela fez foi totalmente inverso ao meu: Ela havia sentido um grande pesar, uma angústia enorme por aquela construção, em especial, ter sido levantada graças ao suor e sofrimento de seus antepassados africanos. Mais do que paz, ela sentiu dor. Por um momento me silenciei, não por vergonha do meu raciocínio ou coisa do tipo, mas processando, primeiro, a sagacidade do comentário do rapaz e, em segundo, a maravilhosa possibilidade que tínhamos naquele momento para discutir História e sua função.
Quando menino, disse eu para turma, passava minhas férias em Paquetá, uma ilha que se localiza, aproximadamente, uns 15 quilômetros do Rio de Janeiro. Lá, passava a infância solto, andando de bicicleta, pescando cocoroca, lendo na biblioteca pública. No Mirante, brincava passando por seus túneis cravados na dura rocha que compunha aquela fortificação de antiga defesa. Naqueles anos nostálgicos da minha infância e pré-adolescência, confessei, nunca no ir e vir correndo, pulando preservativos e merda humana deixadas dentro dos túneis na parte de baixo do Morro do Vigário, ter parado para pensar no que os veios no teto e nas paredes significavam.
Foto de Yuri (Cirulo) - 21 de Fevereiro de 2011

Muito tempo depois, continuei o relato, já adulto, professor de História, visitei com alunos da graduação que passavam o carnaval daquele ano comigo a mesma, porém diferente, ilha e seu mirante. Ao entrar nos túneis um silêncio mórbido em cada um de nós se instaurou e mesmo o belo pôr do sol que beijava a Baía de Guanabara não foi o suficiente para que todos, ao seu próprio modo, sentissem com o tato e com o coração, uma consciência construída de que aquela passagem havia sido perfurada na pedra certamente por escravos africanos arrancados de sua terra por mãos brancas.


Foto de Aquino Neto - 21 de fevereiro de 2011

Não posso falar do sentimento dos meus amigos, mas me recordo ainda agora como as pontas dos meus dedos percorriam a parede e o significado que aquele gesto teve.
Hoje, dia 20 de novembro, comemora-se o Dia da Consciência Negra. Curioso, mas quando eu ainda morava no Rio e subia e descia minha rua, tomava o trem para a Central e convivia constantemente com a visão esdrúxula e doentia do racismo diário que os negros sofrem, nada mais teve tanto impacto quanto o passar os dedos naquelas paredes. Ana dizia hoje pela manhã que, como negra, impressão idêntica a minha no túnel do Mirante de Paquetá, teve ela ao visitar o Cemitério dos Pretos Novos, no bairro da Gamboa, no Rio de Janeiro (para conhecer sobre, clique aqui). Ela tem suas razões. Eu tenho as minhas.
As vozes se misturam e me embaraço. Volto à quinta-feira dessa semana: Olho meu aluno e percebo que transmitimos o mesmo pensamento e temos o mesmo questionamento. Talvez, eu, por menos coragem, transformo em palavras naqueles minutos a pergunta que permearia nos momentos finais da nossa aula, certamente, a construção das nossas reflexões: Eu, ele, sua amiga, e hoje pela manhã, Ana, teríamos o mesmo sentimento de perda, dor, revolta, ou até de reflexão do mal que foi a escravidão negra e as feridas ainda abertas que se mantém e tão amargamente tentam ser apagadas pelo discurso tacanho, sem o estudo da História?
A consciência construída torna-se, a meu ver, uma das afirmações mais necessárias no cotidiano e o mecanismo fundamental para anular o discurso, já absorvido até por alguns negros, de que o caminho é esquecer o debate sobre o racismo, mesmo eu já cometi esse erro, é colocar panos quentes na realidade que nos cerca. Não somos todos iguais. Jamais saberei na pele o que é ser preterido por cor em um país tão multicultural quanto o Brasil. Jamais saberei o que é ser parado na rua e revistado antes do branco que caminha ao lado. Jamais saberei muitas coisas sobre o que é ser negro no meu país. Hoje, mais do que nunca, de minha parte ou da do meu aluno, percebo que não se trata de um sentimento de empatia com a História dos Afrobrasileiros e seus antepassados, mas uma profunda necessidade de luta constante pela afirmação de identidade e da dívida que deve ser paga pelos males que este passado escravocrata tão recente legou ao presente e que permanece se reconfigurando constantemente com o olhar reprovativo quando sua companheira negra sobe para o próprio apartamento no elevador social e é veladamente vista como um empregado que deveria subir pelo de serviço...
Aliás: Quem inventou essa praga de que elevador de serviço é para os prestadores de serviço em condomínios...? Elevador de serviço é para descer com entulho, lixo, seu cachorro para passear!



Ps. Se quiser ouvir um som bom, a voz poética, clica aí embaixo nos Óculos escuros de Cartola:



segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Oxigênio interdisciplinar, poluição acadêmica e as Luzes escuras de um quase Neon



A Internet me ensinou a fazer piña colada. Consequentemente, os resultados foram imediatos: derrubei quase uma garrafa inteira de rum, leite de coco, abacaxis e pitadas de leite condensado para dentro do meu corpo de trinta e dois anos de idade. O drinque puertoriqueño, além de uma enorme azia, me deixou na rede balançando e divagando devagar durante todo o feriadão.
O impacto na disciplina História, de uma revista lançada pelos intentos de Marc Bloch e Lucien Febvre, em 1929, cujo teor político-acadêmico foi bem assinalado pelo francês François Dosse, no final dos anos 80, não pode deixar jamais de ser pensado, é claro. Mas, valei-me deus, praticamente quase 90 anos depois, o ar de “novidade” que muitos dinossauros, melhor, tiranossauros-rex, tentam dar no país dos tupiniquins a ela, fora o exagero ingênuo, tornou-se chato e jocoso.
Hoje, tanto tempo depois, entre o livro de capa amarela do Dosse (1987) e o de capa verde do Burke (1990), ainda prefiro o primeiro (por ser mais crítico). Ainda guardo com cuidado a cópia que fiz do exemplar que o Clodoaldo carregava para baixo e para cima, com muita estima, naqueles anos agradáveis e sonhadores da graduação. Seu irmão era formado em História na mesma faculdade. Assim como eu, Clodoaldo – que mais parecia um fisiculturista – puxava disciplinas aqui e acolá para tentar se formar. Por onde andará Clodoaldo? Da última vez que nos encontramos, ele estava bem, lecionando em diversos colégios conceituados da Baixada Fluminense. Fez nome. Gente fina pra caralho!
Toda a proposta da revista não deixou jamais de ser interessante. Porém, sejamos francos e visigodos, proposta de fundo político e corporativo na academia. Afinal, à História deveria caber o postulado de “carro-chefe” (por que não carro-forte?) das Ciências Sociais, naquele momento, extremamente inventivas e com propostas realmente inovadoras. Pimba! Puta sacada do jovem Bloch e do, um pouco mais, maduro em idade, Febvre. O primeiro, já sabemos, medievalista, lutou na Primeira Guerra Mundial, no futuro tornar-se-á membro da Resistência Francesa, árduo defensor de um interessante ativismo político contra os totalitarismos e acaba morto, fuzilado pelo regime nazista de Vichy. O segundo, poderíamos chamar de “verdadeiro político nas trincheiras acadêmicas”. Colherá os frutos em vida, diferentemente do franco-judeu Marc Bloch. A universidade precisa, certamente, dos dois tipos: Eles não deixam de ter suas qualidades para a máquina do tempo burocrático.
Século XXI. Nunca antes o oxigênio respirado teve em sua composição na Tabela Periódica elementos tão próximos às Luzes multicolores de uma lógica de pensamento de meados do século XVIII. Curiosamente, não sei, o teorema das interdisciplinaridades proposto (absorvido) pelos Annales (a tal revista francesa) para o campo da História, transformou-nos em jovens especialistas esmigalhados, fatiados produtores de análises de uma História em Migalhas, tomando de empréstimo o termo de Dosse.
As mesas de bares e as conversas longínquas com meus amigos, seja num copo suado pelo choque entre a cerveja gelada com o mormaço, que mesmo com todos os alertas climáticos, ignoramos, seja nas viagens balangandãs pelos brasis que teimamos em ignorar com tapinhas nas costas e elogios ao Salami Science, me alertaram para o seguinte veredicto: O oxigênio interdisciplinar está, há muito, perdendo para a poluição acadêmica! Na verdade, num fordismo de artigos e livros compiladores de artigos, o homo producentis ignora o principal: o conhecimento e sua interlocução com a sociedade e os benefícios que isso poderá trazer à todos nós.
Se voltar sua memória chumbada pros percalços de idos de XVII, XVIII ou mesmo do XIX (aí a coisa até começa a descambar), a educação, ontem e hoje, privilégio de poucos, queira quer não, ajudava a formar o individuo para as realidades táteis que lhe eram impostas. A desigualdade, evidentemente, já estava lá. Aliás, a desigualdade, segundo Agostinho de Hipona, será encontrada até na Cidade de Deus. De fato, nisto ele foi profeta, pois o mundo que atualmente é a Cidade de Deus, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, demonstra bem o que o teólogo de Hipona teorizou. Enfim, tome o seu galardão, segura na mão de deus e vá!
É muito preocupante, em todos os sentidos, um jovem ter que se submeter, como me submeti, à norma de modus vivendi que é fatiar, especializar, projetar cada vez mais suas reflexões para apenas uma área de conhecimento. Lógico, concordo com o velho Aldir Blanc – mestre maior: Quem sabe de tudo, não sabe de nada. Entretanto, o gás neon que escurece a vista, nos afasta da Luz, polui por demais o oxigênio que paira no ar e que não há como ser ignorado.
Prega-se nos exames de seleção para ingresso na Universidade, o uso combinado dos mais variados discursos – tecnológicos, de humanidades, etc. – e após essa etapa, mal cumprida por sinal, nos cerram no hermético calabouço da grade curricular com obrigatórias e optativas (que são obrigatórias disfarçadas) disponíveis ao vento, sabe-se lá quando.
Falta-nos tudo.
A interdisciplinaridade, e essa fala não vem de um bêbado, vem de um especialista dentro de uma especialidade exótica no país, é como um unicórnio ou um pote de ouro no final do arco-íris.
Os concursos públicos se tornam cada vez mais escassos e, quando não, corporativistas. Quando se vê um currículo vitae variado, encara-se mal o profissional em que foi investido tempo e auto-tempo para que, ele mesmo, chegasse naquele momento de prova(ção) – nada mais ingênuo e teatral que um concurso de Provas e Títulos. Se bolsista, impostos foram ali, muito restritamente e quase como doação, investidos. Se não bolsista, dinheiro de trabalho, de sapos engolidos, para uma boa preparação em línguas, pós-graduações e afins. Não se percebe o quanto temos poluído nosso espaço de trabalho e convívio nas Universidades. Locus por si só, de uma áurea pesada e de dar náuseas. Olha-se com desdém quem pretende em algum momento ir um pouco mais além do que os meandros das páginas escritas para si mesmo de uma dissertação ou tese.
É claro que as especialidades, o stricto sensu, é um caminho historicamente reconhecido (e necessário). Não brado aqui que no especialista se deposite toda a culpa intelectual do mundo. Jamais! Seria cuspir num prato que eu mesmo preparo e degusto diariamente. A questão é outra. Ela se fundamenta no simples fato de percebermos que a interconexão, a interlocução deve ser cada vez mais temáticas nos Colóquios, Simpósios, Seminários. Há matemáticos, médicos, físicos que tem muito a dizer para filósofos, medievalistas, brasilianistas, colonialistas, etc. e sempre o vice-versa.
A técnica, inerente a cada campo de saber, se conquista pela prática. Jamais serei um bom médico. Mas, posso ser um bom historiador da medicina (inclusive da Medicina Medieval). Jamais serei um bom Arquiteto, mas posso ser um bom historiador da arquitetura colonial. E a roda segue. E segue e segue e segue.
Enunciados como poder, estado, violência, política, cultura, identidade, etc., iriam se tornar mais abrangentes, suscetíveis de análises teóricas e críticas práticas, o que providenciaria ao cotidiano social uma coisa muito simples dentro do postulado das complexidades: respirarmos o ar das interdisciplinaridades.
Seria interessante preenchermos de uma vez por todas o fosso, amenizarmos a lacuna, construirmos uma ponte para ultrapassar o abismo que jaz entre a graduação e a prática cotidiana dos bacharéis e licenciados que são formados ano a ano. Quem sabe para os concursos a saída não deveria ser temática? A cadeira de área X pretenderá um docente-pesquisador que pesquisou sobre X e suas variáveis aproximativas. As grades, com direito às barras de ferro e tudo, ainda estarão lá, intocáveis por enquanto, mas, como sempre, a prerrogativa da escolha se manteria em nossas lisas e delicadas mãos sem calos.
Nossas feridas são outras. E foi na sua fina casca que eu quis mexer. Se é que ensaiei uma coceira na garganta aqui ou acolá. Quem saberá?



Para sair do meu provincianismo discursivo, os livros a que fiz referência tratam-se de:
*DOSSE, François. A história em migalhas: dos “Annales” à “Nova História”. São Paulo/ Campinas, SP: Ensaio/ EdUnicamp, 1994. [Original francês de 1987]
*BURKE, Peter. A Escola do Annales (1929-1989): A revolução francesa da historiografia. São Paulo: Editora UNESP, 1997. [Original inglês de 1990]

domingo, 25 de outubro de 2015

O fim da falsa culpa: um ensaio pela liberdade

Foto que tirei, em 19 de outubro de 2015, de intervenção feita numa parede na subida da escadaria da Igreja do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo, Centro Histórico de Salvador - Bahia. Seus 55 degraus serviram de cenário para o famoso filme "O pagador de promessas", de 1962, baseado em peça de Dias Gomes.


Queria dizer, e já dizendo, que a cada dia que passa, mais me surpreendo com a complexidade dos valores moralistas que se constroem constantemente à minha volta e que, volta e meia, me atingem diretamente o fígado, que é a alma. Por isso, me posiciono: Sou a favor da legalização do aborto e da maconha.
Consequentemente, o modelo tradicional/ocidental de “religião” me assombra. Grito aqui, sem medo de cuspir em algum prato ou ter meu teto de vidro despedaçado: sempre me assombrou.
O mais curioso é que nunca tive uma educação familiar que me obrigasse a professar uma fé, um posicionamento político ou coisa do tipo. O discurso até os meus dez anos era muito simples: havia valores educacionais e de trabalho igualitário na minha casa que, por sorte, construíram diariamente meu caráter, e todo e qualquer tipo de posicionamento que eu tomasse era e é respeitado pelos meus pais. Assim, pude frequentar uma vez uma missa, ir a terreiro de candomblé, ubanda, igreja evangélica, pentecostal, comer doce de São Cosme e Damião, tomar sopa dia de sábado em Centro Espírita e até mesmo visitar orfanato com professores da escola em que estudei entregando donativos para crianças como eu.
Um dia a coisa mudou e não sei por que cargas d’água houve um enfraquecimento em mim no quesito “ética laica”. E isso, de quebra, levou meus pobres pais-liberais para o mesmo abismo da culpabilidade, principalmente mamãe que sempre foi de uma clareza fantástica de ideias, amiga do mais variado tipo de pessoas, consideradas pelo moralismo fundamentalista cristão, que a cada dia cresce mais no país, como “desviadas”.
Participar de um corpo religioso sempre me foi uma dúvida pelas muitas dores que, mesmo inserido e absorvido no corpo religioso, eu sentia, fosse após um dia de festa no terreiro da Dona Iraci ou numa reunião no Salão do Reino dos Testemunhas de Jeová. O discurso não atendia profundamente minha necessidade de viver e conviver com o externo: meus amigos de pais divorciados, o amigo de escola cuja família era ele, filho único, sua mãe biológica e sua companheira (um casal maravilhoso e lésbico que me tratava com um carinho enorme), etc, etc. Mas nenhuma instituição religiosa me causou mais dor e sofrimento do que a igreja em que fui batizado e frequentei constantemente na minha pré e adolescência.
A instituição religiosa e cristã e protestante (que paradoxo este último termo) reproduzia e se fundamentava nos mesmos moralismos excludentes que eu via na escola, na rua e nas esquinas por onde eu passava no meu dia a dia. Aquelas pessoas, que convivi até então nos meus dez anos de idade, tornaram-se “desviadas”, “criaturas de deus”. Passaram a necessitar da “salvação em Cristo”, eram “do mundo”. Eram “diferentes de mim”. Essa foi a primeira grande dor que senti: eu deveria orar por aqueles “perdidos” que “viviam fora do núcleo verdadeiro da felicidade e do correto”, logo, “estavam fadados à perdição”, precisavam da “conversão” para “tornarem-se verdadeiros filhos de deus e não mais criaturas”.
Clamava-se pelo caminho da “santidade” entre tropeços sôfregos, justificativas fundamentadas na esperança, crença no invisível-visível, na vida eterna em Cristo Jesus, nosso senhor. No fundo, o controle social interno da corporação de candidatos a homens e mulheres de bem a caminho da perfeição-salvação se dava por meio da construção do simplório sentimento de “culpa”. Isso mesmo: culpa. Não se engane, a roda gira graças à culpa. Depois (um depois de passado, antes de mim), surgiu o fantástico discurso neo-pentecostal da prosperidade-riqueza, quase um deus vult do capitalismo. A fórmula medieval de “doe e você receberá em dobro” se adequou perfeitamente às pessoas de baixa renda e que depositam e depositaram toda sua fé no milagre divino-financeiro. A roda do capitalismo nesses moldes, nem Weber esperaria com tanta perfeição. Pois é, entre 1904 e 1905, quando do lançamento de seu famoso livro, não havia vocês sabem quem para ele analisar! Voltemos à culpabilidade. E que volte algum Max Weber para colocar de maneira mais erudita que a minha, o dedo nas chagas da cruz!
Era culpa porque “o filho de deus”, “o próprio deus” morreu num madeiro por um pecado que você nem tinha cometido, mas ele sabia que você um dia ia ter o azar de professar, afinal ele sabe de tudo antes mesmo de você saber que vai fazer. Era culpa pelo cine prive que só mostrava bunda e peitinho nas madrugadas da TV Bandeirantes e a punheta da noite anterior à “escola bíblica dominical”. Era a culpa pela vontade de comer a menina do banco da frente que tinha culpa porque queria ela também comer você. Era até a culpa de saber que você não comia ninguém, mas havia uns tantos cantores de coral que fodiam e você não! Enfim, não vamos culpar ninguém, já há culpa demais. Afinal, o importante era pedir perdão e essa lógica alguns pegavam rapidamente: então, piroca na vida e depois você pede perdão!
Em dado momento, uma importante guinada, ao menos para mim, aconteceu: Cada vez mais, tudo à minha volta fazia menos sentido: os tapinhas nas costas por uma bela poesia cristã, um “abençoado” por uma letra de música ou uma peça adolescente de teatro. Um “aleluia” por uma reflexão retórica à um trecho bíblico, etc., etc. Fui acometido no melhor da vida de uma depressão que diziam ser de fundo espiritual, “a chama da fé já não estava ardendo”, eles diziam. No fundo, o que eu via era a culpa depositada onde não há culpa. Logo, todas as minhas namoradinhas eram “jugo desigual”. Graças a deus!
Os remédios surgiram e que não deixam de ser drogas. Precisava deles para dormir, acordar, sorrir, andar de bicicleta, jogar bola, estudar. Uma vida tosca. Onde eu estava errando? Eu nem olhava e olho com maus olhos as pessoas que evidentemente estavam contentes, felizes na fé. Eu só passei a perceber, simplesmente, que aquilo não servia para mim o tanto que servia para cada uma delas. Aquele “corpo religioso” não conseguiria comportar a minha alma e meus anseios como cidadão, ser humano, pessoa, individuo. Eu queria ter amigos, amigas. Ter perto de mim gays, lésbicas, maconheiros ateus, agnósticos tucanos, petistas do candomblé... católicos viados, putas evangélicas, enfim, eu queria era ser livre de culpa religiosa. Veja, deve ser bom e deve mesmo ser bom para um monte de gente: mas não é para mim. A lógica é racional e bem simples.
Conversei com meus pais naquele período sombrio e a ideia foi maravilhosamente aceita por eles, sempre tivemos amigos que frequentavam a nossa casa e trabalhos e que se enquadravam em algum momento nessa sintética e livre definição acima.
Passei a pensar que era bem mais leve e alegre conduzir minha vida novamente a partir de uma ética que procurasse acima de tudo não ferir a minha individualidade e a alheia. Não era uma filosofia de vida ou coisa do tipo, era a única saída que eu tinha para viver. As drogas receitadas diminuíram.
Aos poucos, a atitude também foi tomada pelos meus pais, a família se uniu ainda mais, as conversas, que sempre foram abertas, sobre sexo, drogas ilegais, álcool, rock and roll, ficaram ainda mais abertas. Até hoje não matei ninguém, estuprei, roubei, furtei ou qualquer outro tipo de atividade que fira os preceitos de direito universal, incluindo, a liberdade religiosa que cada individuo, por lei, tem. Apenas não tenho mais uma religião e não me insiro na institucionalidade de nenhuma delas, mesmo entendendo que, para elas, a necessidade de se institucionalizar é latente. Eis o problema para eles e para mim.
Recordo com certa náusea, confesso, de que quando entreguei formalmente minha solicitação de “exclusão do rol de membros da Igreja” – formal isso, não? Quanta institucionalidade para a fé! – o pastor, um senhor agradável que ainda guardo com um enorme respeito e carinho, soltou a máxima: “As muitas letras te deixaram louco”. Citação paulina, ele era muito bom nessas coisas. Eu estava cursando graduação em História.
Acho que anos depois, seu filho, que também tornou-se um ministro e não deixava de ser um bom amigo, numa conversa informal quando eu disse que havia terminado um relacionamento (que era jugo desigual, até então) de uns quatro anos, para ficar com uma paixão que me surgiu de repente, disse: “Mas, ora, sem igreja, religião... quais serão seus fundamentos morais e éticos para conduzir sua família, sua vida?”. Curiosamente o discurso do desigual sumiu na nova realidade.
Acredito que essa voz-desabafo de hoje e cada luta diária que travo pela laicidade no Estado e no Ensino, uma laicidade que permita o conhecimento pleno de toda e qualquer manifestação de religiosidades, explica bem quais os fundamentos morais e éticos que eu, brasileiro, servidor público federal, filho, companheiro e amante e, acima de tudo, livre e sem culpa, sigo na condução da minha família não tradicional. Uma família que se propõe de forma veemente a não se enquadrar nas normas institucionalizadas por um governo que tem se vendido cada vez mais à Bancada da Bíblia no Congresso Nacional.
Sou a favor do direito da mulher abortar e ser amparada pela lei em sua vontade individual de praticar a interrupção de uma gestação dentro dos prazos regidos pela Medicina e conforme dados da Organização Mundial da Saúde. Sou a favor do uso livre da pílula do dia seguinte em conformidade com o direito individual da mulher de ter o controle de seu corpo, enquanto individua e cidadã, principalmente, se for ela vítima de violência sexual e não só. Sou a favor da legalização da maconha, sua produção de qualidade, venda em locais específicos e o uso individual e coletivo de forma recreativa como fazemos com o álcool e o tabaco. Sou a favor do matrimônio de casais de mesmo sexo e dos os direitos legais que disso decorram. Sou a favor da adoção legal por casais de mesmo sexo. Sou a favor da liberdade religiosa e de toda e qualquer manifestação cultural de religiosidades. Sou a favor do individuo inserido na coletividade do que deveríamos chamar de nação brasileira. Sou até mesmo a favor da presença de religiosos no Congresso, desde que eles não firam a nossa individualidade.
Axé, amém e viva o azul.


terça-feira, 13 de outubro de 2015

Se não há vagas: não há mérito

Eu queria uma foto de um negativo. Mas não tenho negativos. Só uma velha máquina da infância.

Essa conversa é em homenagem ao Ivan "Zecão"
e tantos outros garotos que a bala e o sangue no chão 
fizeram eternizarem-se na minha memória. Mas,
principalmente, me fazendo menos ilha.

Eu queria dizer, já cometendo o pecado de deixar entornar um pouco o chope da tulipa, que eu queria, eu queria era mesmo contar aqui nessa conversa como eu me sentia uma ilha quando criança. Uma criança ilha cercada por todos os lados de uma proteção familiar amorosa, paciente, espirituosa e formadora de um caráter moral e educacional que mesmo hoje – com o canudo que guardava o diploma guardado em algum buraco da estante do escritório – me surpreende. Eu não sei, na verdade, se sentia isso – a coisa da ilha – quando criança ou se isso foi se construindo em mim depois de velho ou nessa vontade estranha que tenho de ficar bradando pelos cotovelos nos mais dissonantes tons que a gente pode encontrar. A questão é que eu queria conversar meio pra lá meio pra cá sobre essa coisa de eu ser uma ilha, pois à volta da minha vida-ilha, do coral de amor que eu enumerei que protegia praticamente intacta minha vida-ilha, o que se via era pobreza, violência e falta de oportunidade, mas falar sobre isso é meio piegas demais e pessoal demais, e a parada, camarada, é imitar a voz dos outros, pois os outros é que são elas e suas vozes é que falam de verdade!
Recordo bem, você tinha que ver, era uma construção de vivência muito curiosa e nem acho que singular: Conheço muitos outros casos de ilhas-vida como a minha. Ainda esse ano, nos festejos de virada perguntarei para papai e para mamãe de onde tiraram o conceito definidor de educação que me norteou e norteia ainda hoje (e não sei muito bem como agradecê-los por isso). Mesmo sendo eu uma ilha, meus pais não me fecharam o horizonte para o que estava lá, além do coral, está certo que não invadiam – ou quase não invadiam – minhas areias limpas e com tatuís, a fome, a violência, as drogas pesadas, a falta de oportunidade, etc., etc. Mas, meus pais nunca fecharam meus olhos para essa realidade, me tornando uma ilha intocável de amor, tampouco construíram em seus discursos educadores um contraponto, muito perigoso por sinal e quase escatológico, de colocar em mim a angústia de “você é mais que obrigado a ter sucesso, pois tem tudo na vida(ilha)”. Acho que era mais universalizante: “Use o que você tem para ajudar os outros, principalmente fazendo na vida o que você gosta de verdade de fazer”. Gostei de fazer muitas coisas, ah, como eu fiz muitas coisas até encontrar verdadeiramente o que gostar verdadeiramente e me sustentar com aquilo! Só não sei bem se ajudei os outros como meus pais queriam que eu ajudasse.
Mas essa porra aqui não é divã. E duas coisas na vida são batata: Se o chope começa a entornar na mão do caboclo e demorar a ser virado a ponto de esquentar é porque o nível de alegria aumentou, para mal ou para bem. Aí, ou a conversa fica chata ou alguém dança na mesa.
A questão é que um certo ardor, e o ardor queima e quebra o santo de barro, tanto quanto um andor apressado o derruba, de que deve-se ter mais aqueles que trabalham mais, aqueles que estudaram mais, aqueles que são mais e tem mais e querem mais e precisam de mais, pois merecem mais e é sempre mais, mais, mais. Mas é o seguinte: Não há vagas.
Não vejo muito mérito se não há chance de demonstrar o mérito, se não há chance de se construir o mérito de maneira igualitária. O resto, o resto a vida mede, mesmo ela não medindo certo, mas algum ponto de corte sempre deve existir. É evidente que sempre haverá a discussão entre biscoito e bolacha. E o menino branco da ilha-vida de amor ser(se tornar) um crápula e o menino negro da ilha-vida de dor ser(se tornar) o mais novo Prêmio Nobel. Biscoito ou bolacha? E pode ser o inverso também. Porém, as estatísticas estão aí para demonstrar que há mais meninos negros sujeitos à dor do que meninos brancos, a não ser que sejam quase negros.
Confesso e me angustia a questão-confissão: Que mérito tenho eu diante do menino negro que morava há quinhentos metros da minha casa e que tinha que trabalhar catando lata e ferro-velho para ajudar os pais enquanto eu tinha aulas de espanhol num curso há dez ou sete quilômetros da nossa rua, indo de carro? E mesmo assim, não aprendi porra nenhuma porque eu era preguiçoso para rever os exercícios, tendo que voltar a estudar anos depois, pois me dei conta, na Espanha, que apenas enrolava no idioma? (O rapaz negro foi morto pela polícia anos depois e nunca viajou além dos morros da Zona Norte para trazer maconha para ser vendida na nossa rua).
Mas a questão pode ser de bêbado tentando imitar com voz de jornalista sensacionalista alguma manchete. Há de se tomar cuidado com esse tipo de reflexão. Pode soar falsa, piegas ou uma busca de auto-afirmação muito típica dos construtores de mérito ou dos escribas da autoflagelação. Não sejamos nenhum dos dois. Biscoito ou bolacha? A vida mede, é claro. Mas, se a vida por si só já comete injustiças na sua métrica, quiçá, cada um de nós! O que mais há são inocentes úteis.
Escuta, escuta, me ouça para o que interessa: se não há vagas, não há mérito! Entenda: não há mérito se não há para todos (e veja que digo todos: bolachas e biscoitos) saúde, escola, vagas em empregos dignos, com salários decentes, moradias decentes. Onde haverá mérito sem esse mínimo? E se na etimologia latina “mérito” é ganho, lucro, proveito e, por fim, o mais atualmente usado sentido de “merecimento”, como conquistar isso tudo sem vagas? Sem oportunidade? Sem espaço? Sem ser podado continuamente por sua cor, seu status social, sua região de nascimento?
É impressionantemente triste como em terras (de) tupiniquins (extintos) tudo é na base do mutatis mutantis. No fundo, o discurso da meritocracia funciona na prática como sua antonímia, o rapaz negro que morreu por vender erva enquanto eu não revia o pospretérito do verbo olvidar na minha infância, mas que se criou lado a lado comigo, além de estatística, é um tosco exemplo de demérito frente ao mérito na boca de quem me usa para defender o mais para quem já tem mais, pois fez mais e merece mais porque o mais é mais sempre para aquele que é mais em tudo e venceu porque quis mais e foi buscar mais e mais e agora tem mais tirando mais de alguém mais. Mas... Nemo iudex sine lege, meus amigos. Não confundam a construção, se não há vagas igualitárias: não há como demonstrar o mérito e permitir que a natureza cometa seus erros de métrica! Eu não sou fruto de uma meritocracia individualista, alguém me protegeu dela!
Amém!

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O moralismo tupiniquim é como uma caixa de bombons com menos um bombom



Quando menino, os muitos pés de manga do meu quintal não tinham o sabor adocicado e o cheiro tentador das mangas que brotavam no mesmo ritmo no quintal do Seu Murilo. Cercada por arames farpados meio enferrujados e com muitos fios de cabelos de todas as cores presos em suas emendas, a grande propriedade do finado ficava abaixo do campinho da meiuca do morro em que morávamos, em Mesquita. Morávamos, já não moro mais e da minha infância, apenas o Leandro Cabeça, o Waguinho e o filho do Cunha (não o deputado) continuam de pé. O resto foi morto em confrontos com o tráfico rival, com os justiceiros ou com a polícia. Naquela época não havia milícia como conhecemos hoje.
Seu Murilo, evidentemente, ficava puto, como ficava meu pai – talvez menos que o Seu Murilo – com os moleques que tinham pés de fruta em casa, mas, assim como eu, eram tentados a roubar as frutas do nosso quintal. Aliás, nunca entendi muito bem porque nunca gostei muito das frutas do meu quintal. O que mais estressava meu pai e meu tio não era o “furto”, eram as bambuzadas que derrubavam as frutas verdes. Me lembro dele gritando: “Pede, porra. Pede que eu deixo pegar”, todo sábado e domingo era isso. Papai não entendia: a graça era pegar sem pedir e correr o risco de tomar uns cascudos do dono do quintal.
O moralismo tupiniquim é tão malfazeiro, tão capenga que é difícil conversar sobre. Não importa quantas bundas você veja na televisão, não importa toda a miscigenação (visando sempre o branqueamento, é claro), não importa que a priminha dê um pulo com o priminho no motel isolado, mas que todo mundo sabe onde é, não importa antes do diploma quantos foram os seus bombons furtados na loja de departamento, sempre teremos na ponta da língua uma explicação plausível para os nossos atos e uma fundamentação perfeita para a reprovação dos mesmos atos quando cometidos por outras pessoas.
Eu queria ir um pouco mais longe, mas ainda sou moralista demais para dizer algumas verdades. Ah, ah aquela mesa de botão apodrecendo que foi roubada certa noite do porão da casa do...

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Bandido bom é bandido morto...

Carceragem da Polinter de Nova Iguaçu - Fotografia retirada do blog Memórias do Cárcere, 29 de setembro de 2010


É no mínimo curiosa e temerária a frase bandido bom é bandido morto. Na verdade, numa análise mais profunda, bandido bom é aquele que foi recuperado, logo, pode deixar até mesmo de ser chamado de bandido.
Bandido significa, segundo o Houaiss, 1) individuo que pratica atividades criminosas; malfeitor; bandoleiro, salteador e, por extensão, 2 ) pessoa sem caráter, de maus sentimentos. É uma palavra que tem sua etimologia remontada ao século XIV. Mas, paremos por aqui. O sol já começa a se colocar matreiro no seu descanso e como é terça-feira, nem cabe um convite para um chope. O dólar hoje bateu a casa dos R$ 4,00, mas nada disso é efetivamente importante para nós dois, pois bandido bom é bandido morto.
A frase me assusta mais quando é entoada por pessoas que são perceptivelmente calmas, ditas de “boa família”, possuem empregos, vão e vem de ônibus, carros e até bicicletas. Assusta, pois ela representa um processo que não é de hoje e que está profundamente enraizado no cotidiano e que pode ser dividido em dois pontos fundamentais: A gradual perda de confiança (ou mesmo desconhecimento mais apurado) nas leis e o cansaço que consequentemente gera revolta. Esse misto duplo pode ser agrupado em outros subgrupos extensos e variados, mas que podem se resumir no sentimento um tanto geral de que tudo se resume a impunidade. Logo, a solução seria punir os impunes com as próprias mãos. Mas isso, veja bem, fará de você um criminoso, um malfeitor. Quando não, já por extensão: uma pessoa de maus sentimentos!
O primeiro ponto fundamental que comentei é de ordem, penso eu, educacional e de sentido formal: boas escolas. O acesso às leis, pelo incrível que pareça, não é tão complicado quanto possa parecer para o mais desavisado, desinformado. Mas, ao mesmo tempo, é claro que o que se vê, o que se lê, remete o individuo que as busca a uma certa desvalorização de seus significados, importâncias normativas (não gosto do anarquismo, penso serem as leis, quando bem feitas e cumpridas fundamentais para a organização em sociedade, aliás, elas foram/são criadas para isso, se bem criadas ou não, é uma outra prosa), reguladoras e em alguns momentos até opressivas. Nosso currículo educacional é fraco, seja nos segmentos básicos, seja na universidade. Além de engessados nesse último ambiente, ele é extremamente vinculado a tudo aquilo que, como uma grande bagagem, foi trazida pelos alunos: uma concepção de estudo voltada para o quantitativo e não para o qualitativo.  Me deparar, por exemplo, com um aluno de História que ignora a pertinência, quando não  a importância, de se estudar períodos como a Antiguidade (berço da dita democracia, salvo, claro, anacronismos) e a Idade Média (onde testemunha-se um Cristianismo que mais e mais se normatiza em concílios e cânones que ainda hoje embargam justos debates nas casas legislativas como o aborto ou mesmo as pesquisas com célula tronco) me deixa assustado. É lógico que, não paradoxalmente, a culpa nunca esteve nos ensinos básicos, afinal quem forma aqueles que estarão atuando nos Ensinos Fundamental e Médio?
O mesmo é passível de se afirmar a respeito do aprendizado dos nossos Direitos e Deveres. Pois é, acredito que nossos direitos estão intimamente vinculados aos deveres que possuímos. Afinal para tudo ou quase tudo há uma contrapartida. Ao que parece, a coisa toda foi engessada de tal maneira que Direitos e Deveres tornaram-se enunciados antagônicos e extremamente subjetivos, quando não individualistas. E constantemente quando se resolve enxergar as leis ou recorrer a elas procura-se sempre atentar apenas para um lado da moeda, a ponto de se ignorar que uma Justiça bem feita é aquela que não ignora as duas mãos da rua.
O segundo ponto, esse o que mais me chama atenção, pois possui uma camada de gordura difícil de analisar e chegar a algum lugar verdadeiramente, gera aquilo que vem sendo aplaudido já há anos por essas “boas famílias”: a justiça pelas próprias mãos. Uma vez que, para o grosso da sociedade – seja no passado ou na atualidade – a Justiça tornou-se um engodo. Como que num ritornello de semibreves numa mesma linha do pentagrama e sem fine, gera a frase que iniciou nossa conversa: Bandido bom é bandido morto.
Justiça seja feita, ponho minha cara a tapa, evidente que ouvirei em algum momento: Você nunca sofreu algum tipo de violência! ou Quero ver se fosse com um parente seu!. Justo. As duas frases são justas e melhor ouvir isso do que a máxima Está com pena, leva para casa!, essa a mais brutal e desconexa.
Milhares de pais, mães, filhos, perderam e perderão entes queridos de maneira brutal pelas mãos de algum algoz, seja aquele desviante (explicarei adiante o que entendo por desviante) com uma matrícula pública e com o aparato estatal por detrás do fardamento ou por aquele desviante sem uma matrícula pública e com o aparato estatal por detrás e na maioria das vezes de chinelo de dedo e sem camisa. Os dois desviantes são bandidos. Os dois necessitam de algum tipo de processo corretivo, simplesmente por serem desviantes.
O Brasil, dado importante este, tem uma das maiores populações carcerárias do mundo e um dos piores índices de correção de detentos. A Justiça é lenta e falha. Esses dados, soltos assim, podem ser manipulados da maneira que o bebum no botequim preferir, inclusive pelas “boas famílias” e pelo “cidadão de bem” que anda revoltado com o contexto. Ao mesmo tempo, segundo relatório da Anistia Internacional (Brasil) a quantidade de execuções extrajudiciais no Rio de Janeiro é assombrosa, basta conferir. Pelo visto, já temos “justiceiros” suficientes, não?
A polícia mata e mata mesmo e tem ferramentas jurídicas ou pelo menos elementos discursivos: auto de resistência, homicídio decorrente de intervenção militar...
Mas voltemos a boa e velha acusação de hipocrisia: É fácil falar sobre o que você não vive! ou É fácil colocar em prática esse discurso militante sem sentir na pele ter a vida de alguém amado ceifada.  A quantidade de exemplos de frases ultrapassariam minha capacidade de produzir sons. Eu poderia, inclusive, ser personalista, soar aqui violinos e contar minha história de vida, o que passei e deixei de passar, as escolhas que fiz, o que ganhei e perdi... Mas, já disse certa vez, um discurso só é bonito se ele convence.
Mas por se tratar de um Ventríloquo queria invocar outra voz.
Em 2004, eu estava caminhando pelo Centro do Rio de Janeiro – não, não fui assaltado – e fui abordado por um vendedor de Ocas”, uma revista publicada por uma ONG chamada Organização Civil de Ação Social, clique no nome que você saberá mais sobre. Naquele mês de julho, o número vinte e quatro da revista tinha o Chico Buarque na capa e uma interessante entrevista com o cantor e compositor, que me permito reproduzir uma pergunta, em especial:

Ocas” – De que maneira a situação de violência no Rio de Janeiro te afetou?
Chico – A mim, pessoalmente, muito pouco. Na semana passada, roubaram a bicicleta da minha filha, por exemplo, ali na Lagoa. Todas as minhas meninas já foram assaltadas mais de uma vez, mas eu nunca fui. Nunca andei de relógio, anel, corrente, até para evitar isso, para não ter muito o que levarem. Então, desses pequenos crimes ando mais ou menos a salvo. Mas isso não quer dizer nada. Essa confusão não me afeta fisicamente, mas de resto afeta tudo. É ruim estar nessa loucura. Não vivo com paranóias, não tenho essa preocupação. Já passei por climas parecidos, mas que eram mais fáceis de lidar. Por exemplo, no tempo da repressão, sendo realmente ameaçado de ser morto, sofrer acidentes, eu convivia com isso. Não era paranóia de repente chegar uma caixa na minha casa e eu ter que atirar longe para ver se explodia. Mas o que acontece hoje é que você vive com esse clima, e o que te ameaça não vem do inimigo. Esses caras que estão fazendo isso, eu provavelmente dou razão a eles. Se o cara quiser entrar aqui em casa e levar essa porra toda, me dar porrada, eu vou ficar muito puto, não vou gostar de apanhar, mas no fim das contas vou pensar que se eu estivesse no lugar dele faria a mesma coisa. Às vezes as pessoas jogam pedras do mirante aqui na minha piscina, e eu penso que, se eu estivesse lá em cima, também jogaria, entende? Estou lá, vendo isso tudo aqui embaixo, estou sem um puto, eu não vou virar evangélico, não vou ler a Bíblia, talvez tente trabalhar e não consiga nada e, aí ainda mais, eu vou querer aquela bicicleta daquela garota que está passeando na Lagoa (Ocas”, ano 2, n. 24, julho de 2004, p. 24).

Eu pensei em enfatizar mais alguns trechos do que outros, mas você deve ter ouvido eu firmar mais minha voz neles, se você tiver um ouvido bom, certamente conseguiu. A primeira questão que vale a pena, mas vale a pena mesmo, é a percepção de que o “outro” não é seu inimigo. Sim, podem me linchar. Mas é exatamente isso. O outro não é e nunca foi o meu inimigo. O processo de se colocar no lugar do outro é complexo e confuso. As motivações que constroem os desvios pelos caminhos são justificativas injustificáveis, mas que, sim, se olharmos atentos possuem um fundo, porém escondido abaixo de toda aquela gordura que já comentei (um exemplo, fantástico é a história do Sandro Dias).
Alguém já disse certa vez, na verdade, quem disse foi o Marcelo Yuka, que a fome é como um esperma por entre as pernas da violência, de fato, ele tinha razão. O processo de exclusão social no nosso país é como uma bola de lama e essa bola por onde passa vai arrastando tudo. Não muito curiosamente, e não fique pasmo com isso, ela não desce dos morros para o asfalto. Ela sobe do asfalto para o morro. É lógico que mesmo sem o mal da exclusão que aloca os menos favorecidos na margem da sociedade de consumo, a Justiça, as leis e todos nós sempre nos depararíamos com indivíduos desviantes, não no sentido de ignorar a individualidade de cada ser e considerar que fulano ou sicrano estão fora dos padrões aceitáveis. Ora, a lei é mutável e deve atender as necessidade – mínimas – de convivência pacífica entre a pluralidade de comportamentos possibilitando a mínima organização na convivência entre os povos. Me refiro ao um problema ético, grave, que quem sabe um dia tenho paciência para abordar. Porém, lembre-se sempre que um bandido é uma pessoa de maus sentimentos.
Finalmente, mas em Fade out, cabe um alerta. Um “justiceiro” nada mais é do que mais um desviante nessa rua longa que é a convivência humana. Nada mais é do que um agente travestido da própria violência que julga combater. E ele tem um olhar que mira um ponto sempre comum: o negro, pobre e favelado. O “justiceiro” não visa justiça, visa uma falsa redenção por meio da morte do outro que por si só – ele não percebe – é a sua própria morte, uma vez que é incapaz de se ver no outro. Eu quero que minha voz continue ecoando, eu quero que a minha revolta contra a violência e a injustiça também, mas jamais serei representado por esse tipo de gente, jamais endossarei o discurso da barbárie, tampouco, da anarquia. Como disse o grande Luiz Gonzaga do Nascimento Junior, o Gonzaguinha, num show em Exu, Pernambuco, em 1989: É somente através do trabalho da comunidade que nós vamos conseguir realizar alguma coisa, somente o trabalho conjunto e o respeito ao trabalho que vai nos levar aquilo que nos queremos. Uma melhor qualidade de vida. E nos queremos o melhor. É ou não é?
Hoje o “moleque” Gonzaguinha completaria 70 anos de idade, eu queria ter conversado sobre isso, queria ter expressado a importância que suas músicas tiveram para a minha formação como ser humano, mas prefiro encerrar em Fade out...

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

A falsa ideia de praia como espaço democrático e igualitário: Apartheid e eugenia social no Rio de Janeiro

Praia de Ipanema - em algum dia quente de verão


Reuniões oficiais escurecendo outras salas
Onde a tortura faz filho
Na pele de um jovem afro-brasileiro
Na pele de um jovem fodido e sem dinheiro
Catequeses do Medo – O Rappa (1994)



As praias são o espaço mais democrático que existe (no Rio de Janeiro). Esta assertiva, em algum momento, esteve ou foi ouvida saindo da boca de algum carioca. E nas últimas semanas, quase há um mês, certamente, esteve mais em voga no estado do Rio de Janeiro. Aliás, se retirarmos o parêntesis da frase, ela pode ter sido ouvida pronunciada por lábios de sotaques diversos em qualquer cidade litorânea do espaçoso, porém espremido, Brasil. Divagarei sobre o velho Estado da Guanabara, pois há muito a dizer, mas seja puxando o x e o s, seja dando bastante tônica ao t e ao d, não importa muito: AS PRAIAS, AQUELA FAIXA DE AREIA COM INFINITO MAR, NUNCA FORAM DEMOCRÁTICAS!
Antes do funk carioca ter sido descoberto pela classe média dos prédios com porteiros, antes mesmo de ter sido descoberto como manifestação legítima de cultura por sociólogos e antropólogos, ele já denunciava o apartheid vivido pelos excluídos e marginalizados de morros e subúrbios de subúrbios do Rio de Janeiro. Aproximadamente, em 1991, quando a fusão do Miami Bass com tambores tipicamente afrobrasileiros tomava de assalto as rádios numa interessante batalha sonora, um disco conduzido pelo Dj Malboro continha uma inteligente, humorística em sua tragédia de típica crônica e certeira música.
Me refiro ao Melô do Farofeiro, faixa dois do Lp Funk Brasil 3. Observe que naquele tempo ainda se utilizava o termo “Melô”, de melodia, antes do tema que seria desenvolvido na canção. Ao mesmo tempo havia o “rap” disso e daquilo outro. De pouco a pouco a coisa mudou. Mas, prossigo.

Na letra, que reproduzo, é possível ler:

Quando vou à praia eu madrugo na estação
Prá esperar o trem que anda sempre lotadão
Embarco na marra, a viagem é uma barra
Por isso na praia sempre faço a maior farra
Chamam “o farofeiro”
Isso não tem nada a ver
Se chamar de novo, já sei o que vou dizer
Eu moro longe prá lá de Nova Iguaçu
Se você não gostou
Sai da Zona Sul
No bairro que moro o calor é muito alto
Sempre tem alguém fritando ovo no asfalto
Falta água, não tem sombra o jeito é ir pro mar
Mas é só pisar na praia e alguém vem me zuar
Chamam “o farofeiro”
Isso não tem nada a ver
Se chamar de novo, já sei o que vou dizer
Eu moro longe prá lá de Nova Iguaçu
Se você não gostou
Sai da Zona Sul
Quando tô na praia deito e rolo na areia
Não tô nem aí se me olham de cara feia
Levo rádio, levo bola, frango assado prá comer
Levo farofinha que mamãe sabe fazer
Chamam “o farofeiro”
Isso não tem nada a ver
Se chamar de novo, já sei o que vou dizer
Eu moro longe prá lá de Nova Iguaçu
Se você não gostou
Sai da Zona Sul
Antes de ir embora eu dou sempre um rolé
Piso na toalha, jogo areia na mulher
Vou do Leme ao Pontal, prá ver fio dental
Depois pego o buzú e dou calote na Central
Chamam “o farofeiro”
Isso não tem nada a ver
Se chamar de novo, já sei o que vou dizer
Eu moro longe prá lá de Nova Iguaçu
Se você não gostou
Sai da Zona Sul

Em finais de agosto deste ano de 2015, a Polícia Militar do Rio de Janeiro apreendeu, com sua típica truculência, um expressivo número de jovens e adolescentes (apenas um branco) que estavam num ônibus a caminho das democráticas praias da Zona Sul carioca (ver matéria vinculada ao Jornal Extra).
Ora, como a letra demonstra em seu humor crítico a “eugenia social” ainda o é como o foi. Exagerado eu? Que sejamos exagerados quando a crítica recaia sobre os excluídos, amigos! Porém, evitarei ser personalista recordando meus tempos infantis saindo de Mesquita (antigo Primeiro Distrito de Nova Iguaçu) com meus pais, com frango e farofa no isopor. Isso fica para um momento mais alcoolizado de minha parte. Mas, não posso deixar de relembrar também da boa mortadela com pedaços de pimenta e pão francês que com a boca salgada de água do mar parecia ter um sabor único quando eu me sentava em alguma sombra de árvore na Praia do Flamengo para comer ou da minha cara cheia de farelo de Biscoito Globo sujando o banco do ônibus que nos levava da praia até a Central do Brasil para pegar o trem. Deixemos o personalismo de lado nessa conversa.
Todo o exagero violento da PM carioca foi prontamente denunciado pelas mídias, movimentos sociais, arautos da liberdade em suas poltronas facebookianas, locus da contemporânea revolução. Prontamente, houve um recuo quase imediato das “forças de segurança” e o TJ-RJ, após ação da Defensoria Pública, proibiu futuras apreensões (Ver matéria vinculada ao Brasil Post).
Fim do impasse? A liberdade, típica da democracia, venceu? Eu estava errado, as praias são sim os únicos espaços que ainda podemos bradar com peitos inflados como local da ação prática da democracia, cujo direito de ir e vir se manifesta diariamente? Não.
Nada mudou. O antes ainda o é.
E veja bem, confrade, você aí que ouve ou tenta ouvir as múltiplas vozes desse velho e ultrapassado Ventríloquo... Você aí, ouça bem: as praias nunca foram e não são democráticas.
Esse discurso de democracia praiana, nada mais é do que uma sutil artimanha que colocaram, sabe lá Yemọja quando, em bom Yoruba, colocaram na nossa cabeça. A questão, Rainha do Mar, é que seus filhos Ogum e Oxóssi vão continuar tomando porrada no quengo de PM, com recuo ou não das apreensões.
Mas, todo exagero de violência emanada pelo Estado leva automaticamente ao recuo, como eu já disse, do próprio Estado e esse recuo obrigatório cria estratégias para os dominantes manterem a boa e velha dominação, uma vez que o Estado, atualmente, funciona evidentemente para um pequeno grupo dominante.
Numa “jogada de mestre” a Secretaria Municipal de Transporte do Rio de Janeiro extinguiu nada mais nada menos do que 22 linhas de itinerários que ligavam, alguns deles diretamente, as Zonas Norte e Oeste à Zona Sul, fora alguns tradicionais bairros suburbanos que emanam de forma profunda a alma, a verdadeira, carioca que também foram subliminarmente podados de seu acesso direto ao mar: Ramos (esse com seu piscinão), Olaria, Maré, Jacaré, etc. (Ver matéria vinculada ao Jornal O Dia).
A polêmica mais uma vez está posta. Se haverá recuo? Não sei. A questão é que há tempos o Rio de Janeiro, enquanto Estado e Cidade, sempre foi geograficamente separado e excludente em todos os sentidos, ora por cercas, ora pela constante desigualdade. Não se trata aqui de considerar a não democratização da praia, à despeito do que afirmam muitos, como um grosso modo, de que todo carioca do Baixo Leblon àquele que se senta à noite na COBAL do Humaitá para beber um chope gelado é empinado e excludente em seu discurso para com uma maioria que vive nos subúrbios e na Baixada, conheço muitos que não o são. Os olhares atentos de porteiros migrantes nordestinos e a educação que seus ouvidos pacientes contra o preconceito da aristocracia falida que ainda se esforça para tomar café no Copacabana Palace, possibilitou uma sólida educação formal para seus filhos, hoje professores em diversos segmentos, inclusive, universitários, médicos, advogados ou mesmo outros porteiros de olhos atentos e ainda ouvidos pacientes para todo o preconceito de uma classe média fodida, mas que, se tudo der certo e há de dar, terão seus filhos nas cadeiras ao lado dos filhos dessa classe média fodida em boas escolas públicas. Ou seja, a coisa não deu muito certo para a minoria preconceituosa da Zona Sul e essa Zona Sul atual, à parte das já tradicionais favelas coladas, é mais mista e bela do que eles queriam!
O próprio caro e contraditório conceito de subúrbio, talvez, não sei, poderia ser repensado. As casas da Rocinha com belas vistas para o mar ou as de outras favelas localizadas na Zona Sul sempre foram um “subúrbio” lá do alto, mesmo com toda a violência provocada pela demanda por cocaína produzida pelos bacanas do asfalto. Sobreúrbio, talvez. 
E sempre foram as mãos e braços firmes de gente que viaja de Japeri até o Leblon ou que desce as ladeiras dos morros que mantiveram a força motriz e pulsante da cultura que se produziu e se exportou advinda da Zona Sul: Alguém lavava aos copos sujos de uísque do Vinícius de Moraes, não? Cartola, esquecido, foi redescoberto lavando carros.
As praias estão aí, cheias de coliformes e garrafas PET, talvez, esse o melhor exemplo de democracia entre pobres e ricos nas areias das praias cariocas. Porém, estes últimos, financiadores dessa “eugenia social” jamais devem se esquecer que assim como somos todos pó (de cocaína até a terra com vermes e ossos), também somos todos merda boiando no glorioso mar de Yemọja. Somos todos nossa firme merda no mar.




terça-feira, 15 de setembro de 2015

O Partido do Trabalhadores no poder e a "Síndrome do crítico de Fim de Churrasco"



            Em 1852, ao menos se reza que foi nesse ano, pode-se ler da pena e tinta de Karl Marx: A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.
            Citação hors concours entre muita gente, ora parafraseada, ora copiada cor por cor, a frase se tornou quase atemporal. Fugindo um pouco da hermenêutica, hoje pela manhã pensei bastante sobre o Pacote de Ajuste Fiscal anunciado ontem, 14 de setembro, pela equipe econômica do governo federal para “corrigir” o orçamento já deficitário de 2016.
            Infelizmente, me obrigo a cair no que podemos denominar como “Síndrome do Crítico de Fim de Churrasco”. Explico: O crítico de fim de churrasco é aquela pessoa que, após comer fatias de picanha, maminha, alcatra, contrafilé, asinhas de frango, linguiças de todos os tipos e gostos, beber toda a cerveja possível... critica o churrasqueiro (para bem ou para mal).
Com a pança cheia, senta-se numa cadeira branca de plástico ou aquela dobrável de ferro amarela ou vermelha de duas marcas populares de cerveja, com o umbigo semiamostra, arrota e diz: faltou um pouco mais de sal na maminha, a picanha estava muito seca... senti falta do cupim!
            O que quero dizer, é que o crítico de fim de churrasco – o churrasco é a melhor metáfora que posso utilizar – é o pior tipo de analista, seja do trânsito ou do FlaXFlu do último domingo. Ele é o pior tipo, pois analisa tudo ao término dos fatos. É covarde. Tem os resultados nas mãos, por isso, é covarde. A síndrome do crítico de fim churrasco é uma mazela no ambiente intelectual contemporâneo da terra brasilis. Mas, ao mesmo tempo, ninguém questionou em nenhum momento o crítico de fim churrasco: Mas por que você não assumiu a churrasqueira? Por que você ao provar a picanha não avisou que estava fora de ponto? Por que você, senhor crítico de churrasco, não tomou a atitude e colocou mais sal grosso na maminha, na alcatra? Por quê? Por quê?
            Não sabemos, só sei que caio agora na síndrome como muitos. Consigo numerar uns poucos que, de maneira coerente, já apontavam para o que aí se testemunha e até tentaram aqui e ali não comer da carne parcelada em duas, três vezes, no cartão de crédito corporativo. Espaços interessantes de interlocução intelectual como MPN ou Para ler sem olhar ditavam uma tentativa bacana e bem sensível de análise do be a ba político brasileiro (e grosso modo, mundial). Isso sendo eu tendencioso, o que não nego, já que tenho tido pouco tempo para leitura e estes são os que acompanho num ritmo mais constante. Certamente, há mais coisa boa por aí, porém, não me iludo: não tanto quanto se merecia a pauta em questão. Algumas atualizações reflexivas de timelines também merecem destaque, diga-se de passagem.
            O fato é, penso eu, e é hipótese, logo refutável ou não, que a própria atitude do governo federal de apresentar semanas atrás um orçamento deficitário para 2016, não sei se o jargão, nunca antes na história do Brasil pode ser utilizado e acho que não, foi uma estratégia política, mais uma vez, tacanha e que sinaliza bem o que as relações de negociação iniciadas pelo Partido dos Trabalhadores há mais de uma década resultaram: Uma eclosão de desconfiguração da ideologia do partido, a fragilidade de um governo coligado com ideologias completamente diferentes das suas e, ao mesmo tempo, que o joio não se separa do trigo. O desfacelamento em tempo real daquilo que chamamos  de ideologia de esquerda pode ter o Partido dos Trabalhadores como um exemplo cabal e mesmo a noção tripartite de sociedade, aquela do Dúmezil, acaba se sacramentando com a atual postura petista: O topo da pirâmide, além de preservado, é mantido pelas forças produtivas da base. Chega a ser engraçado pensar que este mesmo governo, não podemos ignorar e devemos reconhecer, possibilitou uma bela guinada – que agora foi freada – possibilitando o início real da erradicação da miséria em nosso país. Mas, a partir do refreamento, me parece, fará sangrar, junto com a moralista e tradicionalista classe média, esses ex-miseráveis e ex-pobres que, certamente, encontram-se presos ao rotativo do cartão, às prestações da TV de LED... O governo, talvez, sem dó nem piedade, fará sangrar suas bases (reais), que já começam a abrir os olhos para a realidade que a cerca. Mudemos um pouco o prisma, sem perder a fumaça do carvão vegetal que braseia o churrasco.
            Ora, em meio uma, talvez, não sei, precipitada greve dos quadros de servidores do executivo (professores, técnicos administrativos, etc., etc. E explico daqui a pouco o porquê da precipitação – mais uma vez “síndrome do crítico fim de churrasco”?), o governo vomita: Não há dinheiro para o ano que vem. Estamos em déficit. Em tese – bem em tese mesmo – até chego a acreditar que quem decidiu por isso pensou muito conscientemente: isso esvaziará as revindicações dos preguiçosos grevistas – sim, muitos são preguiçosos e militam mais no Facebook do que na rua. Mas, a rua virou o Facebook, paciência. As folhas das amendoeiras que caíram no chão esta semana estão mais mobilizadas e unidas do que meus colegas na universidade em que leciono.


            Deste modo – crítico de fim de churrasco – é fácil até perceber a tal da precipitação. Neste momento, momento ontem, não mais o do aviso do déficit, mas das medidas para “corrigir” o rombo, que as forças sindicais deveriam se reunir e decretar uma greve geral aos moldes belos e históricos, sim, nos moldes daqueles que ajudaram a gestar o Partido dos Trabalhadores, em que era possível testemunhar artistas fazendo show como os do Primeiro de Maio para financiar o corte de salários, etc., etc. Mas, se formos coerentes, não vejo uma real possibilidade. Ok, possibilidade sempre há, mas, me refiro ao fundamental apoio da sociedade.
 O problema é que esse passado “glorioso” tornou-se mitológico e pela lógica de relações, basta um primeiro corte de ponto dos servidores para que todos regressem ao trabalho. Claro, isso não acontecerá. Assim espero. Mas, no fundo a realidade é o horizonte que se desenha com a perda de apoio, cada vez maior, das camadas mais populares frente ao desgastado movimento sindical, ou seja, o grosso da sociedade que se verá, também, atingida pelos cortes, mas que não é tola e sabe que você servidor público federal faz parte de uma parcela substancial que ganha mais do que a maioria dos cidadãos comuns do nosso país. E o problema para nós é mais grave ainda: o serviço público federal no Brasil nunca foi lá uma grande maravilha e configura-se um sonho de comodidade, mais do que para uma minoria, de possibilidade de melhoria da nossa nação!
            Por outro lado, o governo age com malícia, mesmo distante, esse passado das greves que gestaram o Partido dos Trabalhadores ainda está no imaginário dos que hoje estão no poder e eles sabem como os sindicatos agem. Até eu que tenho apenas 32 anos aprendi rapidamente observando mais atentamente o discurso tão belo e profundo de alguns confrades.
Então entramos numa guerra midiática constante, de idas e vindas. Por um lado, os dinossauros sindicais que não tiveram sua fatia no bolo petista (no geral, é isso), de outro, alguns gatos pingados, jovens acríticos, covardes, logo “críticos de fim de churrasco”, que se sentem desconfortáveis em dizer: Olha, a coisa é mais complicada do que o que o seu sindicado informa em sua página no Facebook. Estes tem medo do linchamento público dos “proletários” professores que dirigem belos automóveis e passam férias na Europa. E sejamos francos: esses indivíduos sabem de cor e salteado a cartilha retórica de “como transformar uma opinião contrária à sua de ‘peleguismo’”.
            Esses mesmos encostos sindicais serão os mesmos que, em caso de um distante movimento mais significativo de impeachment irão às ruas defender esse governo de mãos dadas com os mais jovens “colegas” de cafezinho nas sedes sindicais, bom, curiosamente, assim espera o governo.
É claro que tal movimento de impeachment, conduzido pelas elites, que, mais à frente acredito que conseguirei demonstrar que abandonarão tal ideia, configura-se como claro golpe ao que chamamos de democracia. Não tenho dúvidas. Mas, se não me falha a má memória, o mesmo Partido dos Trabalhadores, em posição de oposição bombardeou o governo Tucano do FHC com pedidos idênticos. Se não me falha a má memória, o atual Vice-presidente da República, arquivou os processos quando estava à frente da Câmara. O atual presidente desta mesma Câmara, apenas aguarda os movimentos. Os dados estão lançados (e eles são viciados).
            Dois pontos: O governo está apostando e apostando muito no desconhecido e está levando fé demais que professores universitários, servidores em geral, movimentos sociais e mesmo o grosso da sociedade que ainda tinha numa vaga memória recente os avanços do governo petista, se acomodarão assim, tão facilmente. Simples na complexidade: Evidente, por um lado que há quase 90% de chance do movimento liderado pelas elites abafarem o processo tacanho de pedido de impeachment (afinal, contra a presidenta não há provas e, ao contrário, seu governo de fato tem sido aquele que mais buscou a transparência no quesito de punição ao mal da corrupção), o governo jogou as cartas na mesa e essas cartas são todas à direita, e esse é o grave problema. Como rezaria o figurino apresentou: Suspensão de concursos, aumento salarial dos servidores suspenso, PAC, Minha Casa e Minha Vida com redução, retorno da CPMF, etc. A elite, não foi tachada. As grandes fortunas continuam intactas. Os bancos privados continuarão a lucrar. O fantasma do impeachment me parece adormecer um pouco. Apenas um pouco. O presidente da Câmara, se mantém em silêncio. As elites, talvez, sorriam. Mas, se querem o poder (de fato), não me surpreenderia que isso trouxesse mais força ao discurso esdrúxulo de impeachment contra a presidenta da República. Porém, ninguém quer parar de lucrar, talvez haja mais lucro, depois dessa jogada apresentada no Pacote, manter a Dilma, sofrendo golpes cada vez maiores e aguardarem as eleições futuras. Seria, talvez, a última pá de cal no Partido dos Trabalhadores.
            O problema, para o governo, é que tais medidas atingem justamente suas bases mais populares de apoio e que, sejamos francos, já estavam descontentes. O discurso: Era ruim com o PSDB, melhor ruim com o PT, começa a perder fôlego. Talvez, sendo bem frio, desculpe, sendo bem crítico de fim de churrasco, o fato de uma greve universitária já se arrastando por quase três meses, greve do INSS e Técnicos Administrativos no mesmo pé, se não mais, estarem ainda em curso, seja o trunfo do governo para minar de vez nossas forças. Fato: Pais, alunos – desde que não vinculados e manipulados aos sindicatos – já estão descontentes. Aliás, professores já não estão satisfeitos, aliás, as Pós-Graduações funcionam, grosso modo, a todo vapor. Em suma: a própria sociedade já se desgasta pelo desgaste que a imagem dos servidores pintadas pelo próprio governo sofreu (ás em conduzir num passado glorioso greves e mais greves). Por outro lado, as forças sindicais contra-atacarão, as redes sociais são ótimos mecanismos para tal. Minha timeline está equilibrada: por um lado, dois ou três são mais críticos com isso ou aquilo outro. Mas, de fato, sendo sincero, sofremos todos da velha síndrome de crítico de fim de churrasco!
            Ao mesmo tempo, uma greve geral seriam, nesse momento, a melhor ferramenta de condução política para as bases, mas a precipitação passada nos deixa com a corda no pescoço. Esta frase é típica do crítico de fim de churrasco. Afinal, como poderíamos prever? Correto, não haveria possibilidade, contudo, maior calma na condução sindical, talvez, teria possibilitado à história um aspecto de menos tragédia e farsa.
            Tudo isso me coloca duas questões fundamentais que preciso beber um pouco mais para compreender: Primeiro, é um momento ímpar para uma verdadeira guinada social que, já não me iludo, não virá do Partido dos Trabalhadores. A reforma política, tão sonhada, não acontecerá. Segundo, o movimento sindical precisa ser revisto. As relações de força inseridas dentro dos sindicatos, principalmente, universitários, precisam reler Marx, abandonar o “aparato”, a utopia e pensar de maneira mais prática frente a conjuntura contemporânea. As ideias marxistas são relativamente jovens se o colocarmos diante de outras correntes de pensamento. O grande problema é o canonicismo no qual se transformaram as reflexões advindas de seus escritos. O problema não está na dialética do materialismo histórico de Marx, o problema está no tiozão do churrasco e no jovem critico de fim de festa que, na última década engordou bebendo cerveja e comendo picanha queimada. Se ele não se levantar, o próximo churrasqueiro, filho do tiozão, manterá o mesmo modus operandi que há um bom tempo, para trás e para frente, teremos que testemunhar.