Sou um ser humano agressivo, não
sei dizer se naturalmente ou como fruto de um ambiente repressivo. Mas, não
sou hipócrita, nada se justifica. Sou um sádico, mas sou demasiadamente humano.
Vivo num apartamento bem próximo
ao Centro da cidade, no máximo vinte minutos de ônibus. Fruto de herança, pago
apenas o condomínio nem tão caro, nem tão barato. A região se valorizou nos
últimos anos. Estou cercado pela pequena burguesia de professores universitários,
novos iludidos ricos, gente de todo o tipo. Aqui do alto do décimo primeiro
andar, posso ver as mulheres com suas calças de lycra apertadas e coloridas,
tops e meias soquetes ridiculamente até os joelhos.
Sou agressivo. A decoração de
natal me irrita. A vizinha de baby-doll vermelho escovando os cabelos me irrita.
O trânsito me irrita. Tenho vontade de gritar para o rapaz do prédio da frente
que toda noite vai à varanda fumar um baseado e tem crises e mais crises de
tosse nos intervalos de cada tragada: Sua besta por que você não para?
Meu pai era oficial das Forças
Armadas, um sádico torturador que não resistiu a Abertura e se matou. Penso que
se matou por eu ter escolhido um curso universitário na área de Humanas, mesmo
quando ele me ofereceu o gabarito da prova do Instituto Militar. Desde então,
me torturava com fotos de gente no pau de arara, dedos sendo desunhados e
coisas do tipo. Meu pai, que o inferno o tenha, se matou no dia da minha
formatura na graduação. Não o culpo. Desejo que esteja no seu inferno cristão
ardendo com os comunistas que ele matou. Não existe céu: eu sei.
De minha mãe, pouco se tem notícia.
Parece que fugiu com um peruano que tocava flauta andina. Ela deve ser feliz.
Só a conheço por fotos. Viva a cultura hippie. O sonho acabou. Melhor mesmo é
nunca acordar.
Desde meus vinte um anos vivo com
Aderbal. Curiosa sua, nossa, história: O encontrei na sarjeta no parque
municipal onde eu procurava caminhar para esquecer a vida – às vezes é
solitário viver, já disse alguém. Ele sangrava num olho, talvez, arrancado numa
briga ou por algum playboy de merda, como eu. Pensei em passar apenas uns dias
o ajudando, acabou ficando como todo desabrigado faz. Tive pena. Ou talvez ele
tenha tido mais pena de mim?
Desde o fim da graduação que pulo
de emprego em emprego. Já fui trocador de ônibus, atendente de farmácia, fiscal
de endemias e até barman em puteiro. Foi quando conheci Manuel.
Alto e desengonçado, eu sempre
servia uma dose a mais do que ele pagava. "Foda-se o patrão", eu dizia. “Afinal,
ele ganha dinheiro com foda, não?”. Manuel sorria. Um dia me viu na porta de
trás do prostíbulo espancando um marombadinho de academia escroto que havia
agredido uma das meninas: sou agressivo, mas não suporto homem que bata em
mulher. Quando tentou me segurar, dei-lhe um murro na cara que lhe varou o
canino. Manuel não gemeu. Mas, assim como Aderbal, sabia reconhecer minha
sinceridade: “Tenho um emprego pra ti, ô do soco”. Limpando minhas mãos do
sangue do salafrário, apenas murmurei ainda ofegante: “Onde?”.
Desde então progredi no ofício e
virei leão de chácara. Manuel, na verdade, era o dono do maior puteiro da
região, o Better Pleasure. Um dia, antes de pedir demissão, perguntei: “Que
porra de nome é esse, Manél?”. Ele na elegância disse: “Melhor Prazer! Não
percebe o som que dá better? Eu queria “metter” para parecer “mete” ou “meter”,
mas não achei significado no dicionário em inglês português. Ô do soco, você
não era granfino? Não transa da língua dos isteites?” Sorri, balancei a cabeça
e deixei pra lá. A língua é viva! A língua é uma pátria. Manuel tinha a sua.
Tenho jeito de rico, fui educado
nas melhores escolas que o dinheiro público e a tortura descarada poderiam
pagar. Não sou mais rico. Foda-se, consigo me virar, me manter. Um bico aqui
outro acolá. Mas ter jeito de rico, sorriso de rico, abre as portas. Mas, sou
agressivo e minha agressividade não tolera homem que bata em mulher. Foi quando
conheci Ariane.
Ela era nova na padaria em que eu,
todas e todas as manhãs, tomava meu café com pão na chapa. Tinha um sorriso
branco, pele branca, cabelos claros e um olhar distante e faminto. Eu entendo
de olhares distantes e famintos. Aderbal, caolho, tinha um olhar assim quando o
vi. Um dia ela puxou assunto. Eu não gosto de conversar com ninguém fora do
trabalho, a não ser Aderbal. Mas, além de não ter um olho, ele também não fala.
Abri uma exceção para Ariane, a merda estava feita e merda rala fede tanto
quanto. Merda é merda.
Só me recordo dela gritando, era
um “para! para!” ensurdecedor, quando voltei a si, minhas mãos já haviam
afundado a cara daquele puto. Lembro a sensação, minha mão direita firme indo e
vindo quebrando cada osso de sua face imunda, cada dente se despedaçando e
esfarelando. Seu sangue misturado aos cortes que se faziam no meu punho. Sou
corpo molenga pesando sem firmeza na minha mão esquerda e Ariane gritando
histérica. O que me deixou mais ensandecido foi ela chorando dizendo que ele
não queria fazer aquilo! Ela que tome no cu. Um olho roxo e dois dentes
quebrados na primeira vez. Deixei passar, falou que foi assalto. Mas, costela
quebrada e corte no braço? Duas semanas depois? Sou agressivo: mas não tolero
homem que bate em mulher.
Um sorriso abre portas, cabelos
penteados e uma boa retórica também. A Abertura se deu, mas os ratos permanecem
nos bueiros. Um velho amigo do meu pai, que o inferno o tenha, aliviou a
situação. Afinal, o morto “era bandido”, disse ele. E completou: “Bandido bom é
bandido morto”. Não entendo porque tanto eu quanto ele ainda estamos vivos. Que
os vermes nos esperem. Sorri e voltei para casa.
Perdi a conversa fiada com a
Ariane, ela os dois dentes. Perdi o café de merda e o pão tosco.
Já estava sem emprego um mês, o condomínio
ia vencer. Nunca atrasei uma conta. Não vou lecionar. Sou agressivo e as
crianças e jovens de hoje me dão nojo. Comeria todo mundo na porrada. Ia dar
merda. Aderbal olha para minha cara, não fala nada. Filho da puta. Come, dorme,
caga. Come, dorme e caga. Mas, acho que é o único ser vivo que eu amo e
respeito.
Contratei uma prostituta. Não sou
misógino. Pedia que ela gritasse seu nome: Aderbal, Aderbal. Pedia que enchesse
a boca enquanto estivesse em cima de mim: Aderbal, Aderbal. Ele nem aí. Ela não
entendia. Mas isso me deu prazer. Foi a única vez depois de Antonia. Um dia
falo sobre Antonia, meu verdadeiro amor. Meu derradeiro amor de faculdade.
Contratei outras moças, finas, na
maioria das vezes. Queria uma companhia diferente do Aderbal. Ele lá, caladão,
na dele. E eu com cada uma delas, uma diferente a cada dia, apenas conversando
amenidades como o tempo, o Cruzeiro do Sul e o suplemento de arte do jornal.
Encontrava essas simpáticas acompanhantes em anúncios especializados nos
classificados:
“Julieta, morena, peitos firme,
bundinha de neném. Falo duas línguas, não sou apenas um corpo bonito: tenho
classe.”
Simples e certeira. Só não liguei
porque não gosto de caracterizações que utilizam metáforas com aspectos
infantis. Quem ia querer comer uma bunda de neném? Que animal faria isso? Sou
agressivo: mas não tolero pedófilo.
“Tamara, lindos lábios, olhos
verdes naturais. Seios como de pitombas, marquinha de biquíni. Fã do Chico
Buarque.”
Tamara era realmente o que dizia
ser, quase ensaiei em levá-la para cama, mas feriria meus princípios. Desde o
caso do Aderbal, fiquei encabulado com o que fiz e um tanto retraído.
“Você tirou a metáfora dos seios
de pitomba de uma música do Chico, não?”, era o teste final. “Sim, a canção se
chama “Carioca”, você gosta?”. Confesso que meu pau endureceu. Nada mais
charmoso no mundo que mulher pilotando uma moto num trânsito como o da Avenida
Paulista e uma puta com classe.
Sou agressivo. Vivo com Aderbal,
um abandonado que encontrei na sarjeta. Cuidei, penteei e ele me é fiel e eu a
ele. Ele ouve meus lamentos. Sabe de cor
minhas histórias. Hoje encontrei um emprego ideal. Sexta, sábado, domingo e
feriados. Ganharei pelos dias cem notas. Cada tarde/noite de trabalho cem
notas. Meu condomínio custa quatrocentos por mês. Ainda tenho tempo para
caminhar pelo Centro, pagar Tamara, comprar comida para o Aderbal e para mim.
Conta de luz e os créditos no celular.
Trabalho num parque de diversões.
Desde que vim para cá, desde Tamara entrar e sair do meu apartamento, nunca
mais tive rompantes de violência. Eu acho. Comecei no tiro ao alvo. Me dava gosto
ver as pessoas atirando nos biscoitos baratos, nos doces gordurosos. Com o
tempo, com o sumiço do operador dos carros que batem, tive minha primeira epifania:
eu me sentia leve ao ver as pessoas batendo, se perseguindo umas às outras
enquanto eu era o dono do controle. Quando eu via que as pessoas só queriam
rodar de um lado para o outro, num clima de paz e harmonia, eu reduzia o tempo
no brinquedo e acabava com essa merda toda.
Um dia, um pai mais exaltado, veio
tirar satisfação, mandei-o tomar no olho do cu. Na verdade, em respeito à
criança e à mulher que o acompanhavam, o convidei para um canto e quando só nós
dois nos olhávamos, disse eu com a boca cheia de palavras: “Vai tomar no olho
do seu cu. Quem controla o brinquedo sou eu. Estamos entendidos, amizade?
Agora, toma esse ticket aqui e vai levar teu menino para passear.”. Sou
agressivo, mas não tolero falta de educação.
Constrangido e raivoso ele partiu.
A mulher, perguntou o que era, ele balançou a cabeça e nada mais. Sou
agressivo.
Minha ascensão começou após um ano
inteiro de fins de semana alegres, nos quais eu me penteava, me vestia, me
perfumava, até a barba fazia, só para ligar e desligar o Barco Viking e
conduzir a fila. Não há maior poder do que estar no controle daquele apetrecho
que como um pêndulo vai de um lado para o outro ao meu comando, ora mais lento,
ora mais rápido. Pessoas gritando. Os mais parrudos, os esmilinguidos, as
meninas... Eu nem me importava em limpar vômito – o auge do poder – e algumas
vezes até merda nos bancos. Acho até que isso me excitava mais.
Mas a vida é como uma roda
gigante, tão clichê, eu sei, mas é verdade. Minha queda veio junto de minha
ascensão. Não se mantém vivo um humilhado. Para todos nós está reservado o
inferno. Mais um domingo, um domingo qualquer, desses sem importância ou razão
de ser. Tenho boa memória e vi que o pai do carro que bate e bate estava na
fila com seu garoto, um pouco maior. Todo operador de parque de diversões tem
um pouco de sadismo e maldade na alegria de atordoar uma criança, seja pelo
medo ou pelo fim do tempo no brinquedo. Eu sou agressivo.
Nunca aumentei tanto a velocidade.
O cara não gritava, não esboçava gesto, medo, angústia. Nada. Eu aumentava
mais. Três já haviam vomitado. Mães gritando abaixo de mim, ao pé da escada de
acesso. Os parafusos faziam barulhos. O homem não se movia. Era uma estátua
entre o vento, os pedaços de comida. Seu filho chorava e nem por isso ele se
mexia. Desligaram a força. Aos poucos o barco foi parando. Sensação estranha.
Eu sou agressivo. Não conseguia me mover. O homem calmamente desceu do
brinquedo, pegou o filho pelas mãos, sua mulher chorava. Chegou perto de mim,
seu hálito era fresco, menta e hortelã. Chegou perto de mim, eu só ouvia
gritos. Vozes misturadas, sotaques muitos. Chegou perto de mim. As luzes se
misturando... “Tamara. Com quem ficará Aderbal?”.
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