Acho que
começou como eu queria, me parece que a voz ecoou consideravelmente na conversa
de abertura do velho Ventríloquo. Acho que hoje posso fechar a parte dois da
saga “A nostalgia contemporânea” que se iniciou naquela mesa de bar virtual do
texto passado. Assim como aquele, este já estava pronto, como pronto estão
sempre meus tons de voz, seja pedalando, dirigindo ou caminhando, não
necessariamente nesta ordem vulgar de coisas. Converso sozinho. Mas, sozinho
não me construo.
Ficou claro
o impacto marcante da minha última ida ao Rio de Janeiro e lembrei de algumas
coisas fundamentais percorrendo a cidade acordando: Os mendigos se recolhendo,
os trabalhadores vindo do subúrbio, o boteco, a lanchonete de sucos. A vida
pulsante na grande cidade. Se é que a vida pulsa ali ou se é que não pulsa já
da mesma maneira nas pequenas capitais.
Começo pelo
“velho mundo”. É fato, meu velho mundo morreu, talvez, ainda restem resquícios
fortes e necessários de reavivamentos de memória. Mas, isso, não lembro se
comentei, aos poucos, apesar de estrangeiro em terra minha, com cada pedalada,
cada passo trocado e esbarrão de ombro na pressa das calçadas cheias, fui readquirindo
o velho traquejo, a ginga citadina. Ao menos, do menos de tudo, o sotaque não
perdi. O mundo que é novo, não deixa de se inserir no mundo que é velho, mas as
coisas mudaram. A questão é: os valores não podem mudar e essa luta é diária, é
constante. Que seja. Me recordei dos cabelos cacheados da menina. A história é
curta e vale um chope. Nada demais. Talvez, eu até seja tacanhamente poético.
Ou não.
A coisa
toda perde acento, pois não lembro seu nome e vagamente consigo desenhar com
palavras como caminhava, meio desengonçada, meio menina magra. Mas de uns olhos
de um profundo verde e cabelos castanhos cacheados. A pele branca porcelana.
Ela acreditava na revolução. Eu não. Talvez, a única amiga que me sobreviveu
verdadeiramente de amizade na época de graduação em História se lembre. Mas eu
não. Eu não lembro e não acreditava na revolução. Aliás, eu não acreditava em
muita coisa além daquilo que eu necessitava questionar.
Eu me recordo
bem que ela me pedia suplicante que tocasse Lua de São Jorge no violão e eu não
sabia que raio de música era aquela – hoje eu entendo – mas na época eu não
entendia e continuava sem entender. Ao passo que o tempo foi passando, fui
ficando cada vez mais relapso com o que havia de sonho na realidade daquela
menina. Só sei que ela começou a namorar um cara do subúrbio como eu, de um
subúrbio melhor subúrbio que o meu, perto de uma linha de trem, mais perto do
que a linha de trem que passava no meu subúrbio. Ela e ele acreditavam na
revolução, talvez, ele menos que ela, ou mesmo ele não. Eu era certo que não.
Eu tinha lá
minhas predileções. Na verdade, queria descer a ladeira da minha casa e voltar
em paz e sem ser assaltado. Conseguir de alguma forma me sustentar com aquilo
que eu gostava e havia escolhido fazer. Para os meus pais aquilo tinha uma
importância tamanha: Eu ser feliz. Meu pai e minha mãe eram revolucionários.
Foram revolucionários. Eu estava sendo revolucionário não sendo revolucionário? Afinal, se eu fosse revolucionário como os meus pais, não estaria sendo
conservador demais? Coisas de menino.
A questão é
que meu pai saiu criança dos rincões do Paraná direto com a família para ser
colono em Cordeiro no Rio de Janeiro – ele me re-contou essa história
recentemente enquanto me visitava, aliás, quando voltei de minha rápida viagem
ao Rio. Lá, ele ordenava vacas, cuidava de bois no pasto, tinha oito anos. Seu
irmão mais velho, aos doze rumou para a capital e foi trabalhar abrindo valas,
aquelas valas largas em Manguinhos para passar a tubulação. Comprou um sítio em
Mesquita, no alto do morro e voltou para Cordeiro aos dezesseis anos, pois aos
dezesseis anos dele Mesquita era um buraco perdido qualquer. Meu pai conta que
lembra bem: “Vamos embora, vamos para o Rio”. Papai se escondeu no pasto,
gritava que não queria abandonar as suas vacas e que viver na cidade grande ia
ser ruim. Meu tio também já me contou a história, mas em tom gozador da frouxidão do meu pai garoto.
Minha mãe
sonhava em ser enfermeira. Ela tinha que ser enfermeira. Mas parou de estudar
para sustentar junto com a irmã mais velha uma casa com mais cinco irmãos. Como
nômades de um pai ótimo sapateiro e uma mãe ótima cozinheira viviam de casa em
casa de favor. Quando eu tinha oito anos de idade minha mãe se formou num curso
de auxiliar de enfermagem e passou a dar plantão. Quando eu tinha vinte, minha
mãe orgulhosa terminou o curso técnico de enfermagem, só pelo prazer de dizer
que era técnica em enfermagem. Para os meus pais, o Segundo Grau técnico era um
título grandioso. Não era mentira. Eles acreditavam na revolução. Eu não. Coisas de menino.
Mas, as
pessoas mudam. A revolução que eles falavam era baseada no estudo. E para meus
pais tudo de mais importante na minha vida deveria perpassar pela leitura e
pela escrita. Logo, pela escola. No fundo, meus pais não sabiam ou sabiam. A
revolução pela qual eles lutavam se concretizaria em mim e o instrumento era a
educação familiar e a aquela que eu receberia em boas escolas, nas melhores
escolas que eles poderiam me dar.
Meu pai,
quando defendi minha tese, não chorou, esboçou alívio. No dia dos pais, de
surpresa, enviei por Sedex um exemplar encadernado com dedicatória em sua
homenagem. Aliás, na dedicatória de minha tese se lê:
“Dedico esta tese à
minha mãe, Isabel Cristina Gonçalves Alvaro, por me ensinar o amor ao trabalho
que extrapola as lógicas da vida; ao meu pai, Apparecido Alvaro Filho, por me ensinar
a responsabilidade que traz a dedicação ao ofício que escolhemos para
sobreviver. Vocês dois são meu maior trunfo e orgulho! Meus melhores
professores!”
Dias
depois, mamãe me contou por telefone que meu pai, ao atender seus clientes na
rua, em dias de trabalho, estava carregando o exemplar nas mãos e antes de oferecer
os produtos – meu pai é representante de vendas de uma empresa Química, o
melhor, diga-se de passagem – mostrava orgulhoso as poucas páginas que redigi
para obter o tão sonhado título de doutor em História. E meu pai tem um orgulho
que talvez eu não tenha: meu filho é verdadeiramente um doutor. Meu pai
acredita na revolução. Eu também. As pessoas mudam. Gostaria de me encontrar,
talvez, cruzar meus olhos com a menina da graduação, apenas perguntar: Fulana,
como vai você? Eu agora acredito.
E foi essa
crença maluca que me levou a pegar um metrô até Botafogo quando o Diego Viana
me enviou uma mensagem, avisando que estaria por lá com mais uns amigos. O
Viana deve ser um dos últimos jovens bastiões que tentam heroicamente manter
uma certa regularidade de boa reflexão em bloges quando o sumidouro das redes
sociais tragou o velho e bom debate. A nostalgia.
A média de
idade naquela mesa de bar pairava nos doce trinta e poucos anos, mas a
nostalgia que imperava ali parecia que cada um de nós havia vivido vários
verões. O Ventríloquo data de 2007, antes disso viajei por blogs comunitários
de literatura, vendi poesia para gringos na Lapa, recitei no Castelinho do
Flamengo. Mas nada foi mais visceral do que o blog. Não sei de quando data o
Pra Ler Sem Olhar, aliás, não sei como fomos nos descobrindo. Acreditamos na
revolução pela escrita.
O curioso
ali naquela mesa eram as ideias se construindo entorno da nostalgia. Piadas nostálgicas,
velhos jovens que haviam sido tragados pelos likes do Facebook e que se
queixavam da ausência dos debates nas caixas de comentários. Falava-se em
feeds, googleranks, palavras chave... E a nostalgia, a cada tulipa de chope
suada, naquele dia suado, naquela noite que se rasgava em São Sebastião do Rio
de Janeiro, tudo se crivava. Não pude ficar. Mas enquanto, meio bêbado de sono
ou de cevada, eu observava a escuridão da baía de Guanabara com um vento fresco
e pesado que entrava pela janela do táxi, só pude recordar: eu acreditava na
revolução e vivia agora a nostalgia da contemporaneidade!