quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A vida que se esvai em estatísticas

Viaduto Manoel Celestino Chagas (Viaduto do DETRAN)
Foto retirada do blog: SERGIPE EM FOTOS

Falo no calor do momento, apesar do vento fresco que entra pela janela do escritório de casa e o cinza da chuva fina que deságua pela capital sergipana. Num dos cômodos da casa, uma jovem senhora passa as roupas da semana, uma trabalhadora, tem filhos, marido, ganha seu sustento pelo seu trabalho. Acordei às seis da manhã, ela também deve ter acordado às seis da manhã. Eu acordei às seis da manhã para fazer ginástica funcional com um grupo de pessoas no parque municipal. Arquitetos, historiadores, Assistentes Sociais. A jovem senhora acordou às seis para colocar o café do esposo na mesa, arrumar suas crianças e depois pegar um ônibus cheio e vir para minha casa. Imagino isso. Deve ser isso.
A casa vai ficando em silêncio, só ouço minha voz transposta no tom que emana o toque dos meus dedos no teclado. Minha voz é essa escrita. Minha voz se converte em escrita.
Minha companheira, que também acordou às seis para ir fazer comigo e os outros a tal ginástica funcional, adianta seus projetos de arquitetura. Eu continuo a dar voz a mim mesmo. Digressões. Sou um ser humano naturalmente só.
Mas escrevo no calor do momento e enquanto eu acordava, um jovem, mais jovem do que eu, era atropelado numa avenida de grande movimento. Era atropelado na mesma via que atravesso com a bicicleta em mãos, empurrando para tentar acessar a ciclovia. O rapaz era gari. Eu sou professor universitário. Mas, nós dois, ele agora e, quem sabe, eu um dia, somos estatísticas.
Escrevo no calor da ira. Da raiva que não se contenta em ler na matéria de jornal on-line, nos dois sites de mais circulação na cidade, apenas uma breve nota do ocorrido, uma breve nota e, mesmo assim, por ser a avenida de grande circulação – apesar do adendo simplório que tenta justificar: naquele momento é pouco o fluxo de carros.
Há uma passarela uns cem metros à frente. Mas, pergunto eu: por que não duas passarelas? As pessoas que moram naquele entorno também se perguntam. Os ciclistas se questionam: como sair dos bairros Luzia, do Conjunto Médici, do Inácio Barbosa, do Distrito Industrial e acessar a ciclovia que segue entra as faixas da famosa Tancredo Neves?
Aliás, eu me questiono: como os ciclistas que moram no entorno da Avenida Adélia Franco, onde deságuam os moradores dos bairros citados, acessarão com segurança a ciclofaixa da Tancredo?

Minha solução foi curiosa: Ando uns metros a mais e atravesso com a bicicleta no sinal quase em frente ao Macro. Corto a rua das Autos-escolas – que ironia – passo por uma área que me lembra a região dos estivadores na Praça Mauá e, um tanto quanto esperançoso, fico aguardando o sinal fechar. Mas, isso não significa que o sinal fechado – apesar de ser um cruzamento para quem está saindo (de carro) do Jabotiana – obrigará os motoristas a pararem. Pego a ciclovia, um tanto quanto ainda esperançoso,  e acho que conseguirei chegar vivo e com a bicicleta na Universidade Federal de Sergipe. Um tanto feliz, observo o trânsito parado e penso: que bom que estou sobre as duas rodas e faço força no pedal. Mas, de repente, e tudo na vida é tão de repente, SVU’s, Vans de empresas rumo ao interior e motos de todos os tipos, passam por cima da ciclovia, rodas largas e grandes – no caso dos carros – jogam-se sobre a tinta vermelha que demarca o lugar do ciclista. A mesma cor vermelha do sangue que molhou hoje pela manhã o asfalto da Tancredo Neves. O mesmo rubro vivo do sangue de mais um trabalhador que se converteu, antes de ser pó, a mais um número de estatística. Ele tinha 28 anos, se chamava Ítalo Tavares Oliveira e deu seu último suspiro aos pés do viaduto Manoel Celestino Chagas antes de se converter em mais um número de estatística. Meus dedos diminuem o ritmo. Representam a voz que embarga: o calor do momento. Paz.

As matérias estão em:
  1. Gari é atropelado e morto na avenida Tancredo Neves
  2. Jovem morre atropelado ao tentar atravessar a Av. Tancredo Neves



terça-feira, 18 de novembro de 2014

A nostalgia contemporânea, os cabelos cacheados, o velho novo mundo

Acho que começou como eu queria, me parece que a voz ecoou consideravelmente na conversa de abertura do velho Ventríloquo. Acho que hoje posso fechar a parte dois da saga “A nostalgia contemporânea” que se iniciou naquela mesa de bar virtual do texto passado. Assim como aquele, este já estava pronto, como pronto estão sempre meus tons de voz, seja pedalando, dirigindo ou caminhando, não necessariamente nesta ordem vulgar de coisas. Converso sozinho. Mas, sozinho não me construo.
Ficou claro o impacto marcante da minha última ida ao Rio de Janeiro e lembrei de algumas coisas fundamentais percorrendo a cidade acordando: Os mendigos se recolhendo, os trabalhadores vindo do subúrbio, o boteco, a lanchonete de sucos. A vida pulsante na grande cidade. Se é que a vida pulsa ali ou se é que não pulsa já da mesma maneira nas pequenas capitais.
Começo pelo “velho mundo”. É fato, meu velho mundo morreu, talvez, ainda restem resquícios fortes e necessários de reavivamentos de memória. Mas, isso, não lembro se comentei, aos poucos, apesar de estrangeiro em terra minha, com cada pedalada, cada passo trocado e esbarrão de ombro na pressa das calçadas cheias, fui readquirindo o velho traquejo, a ginga citadina. Ao menos, do menos de tudo, o sotaque não perdi. O mundo que é novo, não deixa de se inserir no mundo que é velho, mas as coisas mudaram. A questão é: os valores não podem mudar e essa luta é diária, é constante. Que seja. Me recordei dos cabelos cacheados da menina. A história é curta e vale um chope. Nada demais. Talvez, eu até seja tacanhamente poético. Ou não.
A coisa toda perde acento, pois não lembro seu nome e vagamente consigo desenhar com palavras como caminhava, meio desengonçada, meio menina magra. Mas de uns olhos de um profundo verde e cabelos castanhos cacheados. A pele branca porcelana. Ela acreditava na revolução. Eu não. Talvez, a única amiga que me sobreviveu verdadeiramente de amizade na época de graduação em História se lembre. Mas eu não. Eu não lembro e não acreditava na revolução. Aliás, eu não acreditava em muita coisa além daquilo que eu necessitava questionar.
Eu me recordo bem que ela me pedia suplicante que tocasse Lua de São Jorge no violão e eu não sabia que raio de música era aquela – hoje eu entendo – mas na época eu não entendia e continuava sem entender. Ao passo que o tempo foi passando, fui ficando cada vez mais relapso com o que havia de sonho na realidade daquela menina. Só sei que ela começou a namorar um cara do subúrbio como eu, de um subúrbio melhor subúrbio que o meu, perto de uma linha de trem, mais perto do que a linha de trem que passava no meu subúrbio. Ela e ele acreditavam na revolução, talvez, ele menos que ela, ou mesmo ele não. Eu era certo que não.
Eu tinha lá minhas predileções. Na verdade, queria descer a ladeira da minha casa e voltar em paz e sem ser assaltado. Conseguir de alguma forma me sustentar com aquilo que eu gostava e havia escolhido fazer. Para os meus pais aquilo tinha uma importância tamanha: Eu ser feliz. Meu pai e minha mãe eram revolucionários. Foram revolucionários. Eu estava sendo revolucionário não sendo revolucionário? Afinal, se eu fosse revolucionário como os meus pais, não estaria sendo conservador demais? Coisas de menino.
A questão é que meu pai saiu criança dos rincões do Paraná direto com a família para ser colono em Cordeiro no Rio de Janeiro – ele me re-contou essa história recentemente enquanto me visitava, aliás, quando voltei de minha rápida viagem ao Rio. Lá, ele ordenava vacas, cuidava de bois no pasto, tinha oito anos. Seu irmão mais velho, aos doze rumou para a capital e foi trabalhar abrindo valas, aquelas valas largas em Manguinhos para passar a tubulação. Comprou um sítio em Mesquita, no alto do morro e voltou para Cordeiro aos dezesseis anos, pois aos dezesseis anos dele Mesquita era um buraco perdido qualquer. Meu pai conta que lembra bem: “Vamos embora, vamos para o Rio”. Papai se escondeu no pasto, gritava que não queria abandonar as suas vacas e que viver na cidade grande ia ser ruim. Meu tio também já me contou a história, mas em tom gozador da frouxidão do meu pai garoto.
Minha mãe sonhava em ser enfermeira. Ela tinha que ser enfermeira. Mas parou de estudar para sustentar junto com a irmã mais velha uma casa com mais cinco irmãos. Como nômades de um pai ótimo sapateiro e uma mãe ótima cozinheira viviam de casa em casa de favor. Quando eu tinha oito anos de idade minha mãe se formou num curso de auxiliar de enfermagem e passou a dar plantão. Quando eu tinha vinte, minha mãe orgulhosa terminou o curso técnico de enfermagem, só pelo prazer de dizer que era técnica em enfermagem. Para os meus pais, o Segundo Grau técnico era um título grandioso. Não era mentira. Eles acreditavam na revolução. Eu não. Coisas de menino.
Mas, as pessoas mudam. A revolução que eles falavam era baseada no estudo. E para meus pais tudo de mais importante na minha vida deveria perpassar pela leitura e pela escrita. Logo, pela escola. No fundo, meus pais não sabiam ou sabiam. A revolução pela qual eles lutavam se concretizaria em mim e o instrumento era a educação familiar e a aquela que eu receberia em boas escolas, nas melhores escolas que eles poderiam me dar.
Meu pai, quando defendi minha tese, não chorou, esboçou alívio. No dia dos pais, de surpresa, enviei por Sedex um exemplar encadernado com dedicatória em sua homenagem. Aliás, na dedicatória de minha tese se lê:
“Dedico esta tese à minha mãe, Isabel Cristina Gonçalves Alvaro, por me ensinar o amor ao trabalho que extrapola as lógicas da vida; ao meu pai, Apparecido Alvaro Filho, por me ensinar a responsabilidade que traz a dedicação ao ofício que escolhemos para sobreviver. Vocês dois são meu maior trunfo e orgulho! Meus melhores professores!”
Dias depois, mamãe me contou por telefone que meu pai, ao atender seus clientes na rua, em dias de trabalho, estava carregando o exemplar nas mãos e antes de oferecer os produtos – meu pai é representante de vendas de uma empresa Química, o melhor, diga-se de passagem – mostrava orgulhoso as poucas páginas que redigi para obter o tão sonhado título de doutor em História. E meu pai tem um orgulho que talvez eu não tenha: meu filho é verdadeiramente um doutor. Meu pai acredita na revolução. Eu também. As pessoas mudam. Gostaria de me encontrar, talvez, cruzar meus olhos com a menina da graduação, apenas perguntar: Fulana, como vai você? Eu agora acredito.
E foi essa crença maluca que me levou a pegar um metrô até Botafogo quando o Diego Viana me enviou uma mensagem, avisando que estaria por lá com mais uns amigos. O Viana deve ser um dos últimos jovens bastiões que tentam heroicamente manter uma certa regularidade de boa reflexão em bloges quando o sumidouro das redes sociais tragou o velho e bom debate. A nostalgia.
A média de idade naquela mesa de bar pairava nos doce trinta e poucos anos, mas a nostalgia que imperava ali parecia que cada um de nós havia vivido vários verões. O Ventríloquo data de 2007, antes disso viajei por blogs comunitários de literatura, vendi poesia para gringos na Lapa, recitei no Castelinho do Flamengo. Mas nada foi mais visceral do que o blog. Não sei de quando data o Pra Ler Sem Olhar, aliás, não sei como fomos nos descobrindo. Acreditamos na revolução pela escrita.
O curioso ali naquela mesa eram as ideias se construindo entorno da nostalgia. Piadas nostálgicas, velhos jovens que haviam sido tragados pelos likes do Facebook e que se queixavam da ausência dos debates nas caixas de comentários. Falava-se em feeds, googleranks, palavras chave... E a nostalgia, a cada tulipa de chope suada, naquele dia suado, naquela noite que se rasgava em São Sebastião do Rio de Janeiro, tudo se crivava. Não pude ficar. Mas enquanto, meio bêbado de sono ou de cevada, eu observava a escuridão da baía de Guanabara com um vento fresco e pesado que entrava pela janela do táxi, só pude recordar: eu acreditava na revolução e vivia agora a nostalgia da contemporaneidade!

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O suor dos outros entre meus dedos

Mesquita - Rio de Janeiro

            Talvez você não saiba, mas conversamos agora. Você ouve neste exato momento minha voz entre as cidades de Laranjeiras e Nossa Senhora do Socorro. Você ouve minha voz enquanto o surrado disco Fa-tal da Gal toca no dial. E minha voz é dissonante. Talvez, você não saiba. Mas, eu sou você. E você há de ser contraditório.
            Você que me ouve agora é o eu de algumas semanas atrás. É o eu com vontade de conversar e que vem falando baixinho junto com cada nota do violão setentista da Gal. Tão nostálgico quanto o nós e o eu de algumas semanas atrás.
            Quando desci e vi o sol gigante ao lado esquerdo da janela, percebi que estava fadado a sempre regressar como estrangeiro na terra em que nasci. Um estrangeirismo que já me perseguia anos antes quando cruzava a Avenida Brasil ou os trilhos que cortam a Baixada Fluminense rumo à Central. Um estrangeirismo blasé que me deslocava dentro das salas ifcianas ou que me fazia olhar a cidade abaixo, suas casas com telhas marrons e as ruas de partes de paralelepípedos e voar com o pensamento para algum lugar longe dali.
            Ainda nostálgico e meio perdido, fui pedalando e cortando as ruas, vendo a cidade acordando, o cheiro do café coando ainda em maquinas de alumínio antigas que não foram tragadas pelos expressos nescafé. O anúncio dos Supermercados Guanabara no rádio de pilha do primeiro camelô a chegar e cada qual no seu lugar. As putas se recolhendo, o Capanema em reforma, os mendigos pelo chão e ciclovias que até então eu não conhecia. Officeboys já se acotovelavam nos balcões das lanchonetes e na Uruguaiana eu já me habituava ao hábito que eu tinha e que era meu ou que não devia ser. Mas, num estalo tamanho, olhando meus pés, abrindo minha carteira, vendo meu reflexo no sumidouro do espelho surrado do sujo banheiro do bar, constatei: não sou mais eu aqui.
            Mesmo o velho joelho, aquele tradicional enroladinho com queijo e presunto, já não possuía o gosto normal dos seis anos atrás: havia agora um quê de exótico. Não era mais eu ali. Eu parecia não comungar da seita da atendente que com intimidade com o cliente do lado, vendedor das Casas Bahia, brincava: “Moro no Jacarezinho, isso você sabe, mas não sabe onde é minha casa”. E eu ali, excluído de uma realidade que conheci, mas que não era mais a minha. Eu: contradição.
            Um sentimento estranho de olhares reprovativos. O trem não é mais seu. O ônibus apertado também não. Mesmo seus olhos fundos e cansados, já não são como os nossos. O futebol na várzea não é mais teu, do nosso copo de requeijão com cerveja gelada e samba na esquina não beberás. Você não é daqui.
            E mesmo agora, nesse carro comprado zero em suaves quarenta e oito prestações e que me prendem no que não era preciso prender, testemunham que realmente não é mais isso aquilo que era, enquanto ouço minha própria voz no presente tentando me explicar o passado. Apenas penso que o suor dos outros escorrem entre meus dedos, nas minhas mãos agora finas, sem calos ou ásperas. Pois, quanto mais calejada e mais áspera a mão de um Ser, mas testemunha-se a aspereza da vida e o quanto aspirar o pó da rua ou o cinza do cimento das capitais torna o pulmão da gente fraco, mas a pele forte e dura.
            Talvez, você não ouça aí do passado ou não entenda seu próprio gesto com as mãos. Ou mesmo o chope gelado em frente a estação apenas certifique, não sua falha, mas toda sua profunda contradição. Vê? Agora você me ouve.

O Ventríloquo voltou...