sexta-feira, 19 de junho de 2009

Memória olfativa

Sempre se sentiu atraído por cheiros. Cheiros diversos. Não fazia muita distinção entre os maus e os bons. Por esse motivo, sempre respirava fundo ao chegar ao lugar que fosse.
Quando criança, gostava de correr de manhãzinha pelos matagais do morro, fazer fecharem-se as dormideiras e, às vezes, até perdia a noção do tempo, sentado pela manhã, observando o abrir das onze horas. Por conta do gosto pelos cheiros, conhecia todo e qualquer tipo de flor: A sempre-viva, as rosas brancas e vermelhas, os jasmins...
Já jovenzinho, arrumou um trabalho na farmácia da esquina e sua maior alegria foi sua promoção como atendente no setor de perfumaria. Lá conheceu Maria.
O frescor do seu cheiro o hipnotizou. Era uma mistura de Leite de Rosas, com uma colônia que ele não sabia discernir.
Ele estava abaixado, quase de joelhos, arrumando a prateleira de fundo, quando aquelas pernas passaram ali. O vento da saia. A brisa da saia. Aquela saia florida. Ele se assustou e repentinamente levantou-se e chocou-se em seus braços – cheiro de Leite de Rosas. Acredito que foi seu primeiro amor.
Não conseguiu ver seu rosto, analisar sua pele, tampouco seguir seu caminhar... apenas um rápido perdão e a rotina do dia o consumiu novamente entre frascos de desodorante, vidros de colônias, perfumes e afins.
Mas foi numa manhã sem sal, dessas de domingo na feira, que em meio aos cheiros das barraquinhas de frutas e legumes, seu olfato enxergou aquela que seria o seu mais possível amor, a cura para sua solidão.
Vestida como pede um dia quente de outono, com uma camisa branca de alças que davam para observar parte das costas e o pescoço, uns fios finos de cabelos escapavam ao coque armado e que permitia ver um rosto fino com traços leves e alegres: lá estava ela.
Mas a imagem não lhe dizia nada. Pois o que lhe importava era o cheiro e o dela era convidativo, uma mistura perfeita de Água de Banho, que realçava o frescor da manhã de um sol que durante o dia prometia esquentar gradativamente. Um frescor que se misturou ao agradável cheiro de louro que ela acabara de escolher.
Quando parou ao seu lado na barraquinha, seus ombros se encostaram e ele pode sentir um suave frio na barriga e ao perceber o frescor leve de sua pele, comentou meio sem pensar: Louro me lembra o cheiro do feijão fresco, não é verdade? Aquele cheiro de feijão sendo refogado com alho e sal. Ela sorriu. Não se pode afirmar que sorriu pelo galanteio sem muito fundamento ou pela espontaneidade do pobre rapaz.
Mas dali foi um caldo de cana e pastel. Uma história sobre uma bela maçã. Uma sensual mordida num pedaço de melancia, algo que se tornou calorosamente pueril enquanto ela tentava manter em seus finos lábios a poupa leve e vermelha da fruta. Um sorriso sem graça. Acanhadamente sem graça.
A feira já se aproximava do fim...
Quase toda feira desemboca numa praça, como um funil de vida desemboca numa praça. Lembro-me certa vez quando passei um dia, um sábado, talvez, não me lembro por uma numa ruazinha perdida da Urca... Eles desembocariam, também, numa praça...
O ônibus chegou disse ele meio triste e sem graça por transparecer em suor as palavras que no fundo queria dizer. Eu não pego ônibus, moro a um quarteirão daqui... Caminharam conversando sobre as árvores que ladeavam a Rua Tomás Cercano transformando-a num belo quadro de Monet. Foi o que ela disse e ele não entendeu, afinal, sua visão era o olfato e seus sentimentos transpiravam paixão, ele só conseguia olhá-la de lado e suspirar o cheiro do louro que ela carregava embrulhado em seus braços. Creio que ele pensava até onde iria seu medo de não conseguir dizer o além dos gestos.
Chegamos disse ela com um sorriso. Podemos nos ver dia desses para continuarmos essa agradável conversa sobre essências e perfumes? questionou num tom amigável e ele encabulado e desajeitado respondeu que sim ao lhe entregar o saco com tomates. Bom domingo. Para você também despediu-se ele sem ao menos perguntar-lhe o nome. Coisa possível de acontecer, pois me recordo bem de que comigo é o inverso, não me importa que me digam o nome ou sobrenome por não saber que cargas d’águas, sempre esqueço. Por isso, em conversas de banco, de praça, de ônibus ou fila de caixa de mercado – nunca pergunto sua graça.
A semana correu como corre um relógio de cordas, ora rápido, ora lento e atrasado. Ele esperava cada segundo de seu tempo para ir novamente à feira da Rua Ernesto Piccolo. Deixou até faltar laranja, fruta que tanto amava e adorava o cheiro de manhã, só para não voltar o caminho da Tomás Cercano com as mãos abanando ou apenas com as frutas e legumes frescos que ela compraria aquele sábado. Ela não foi à feira.
Penso que em sua cabeça um misto de decepção e tristeza uniram-se de maneira uniforme como, por exemplo, quando esperei que você me dissesse aquilo e ouvi aquilo outro. Foi um domingo sem graça aquele, o dele. Logo o inverno chegaria e lá se vai o outono e ele realmente se foi, pois há coisas que não podemos evitar ele pensou enquanto voltava caminhando pela Travessa Borges Galeano.
Durante um mês, um mês e pouco, ele caminhava todo domingo pela manhã e esperava até a xepa da feira na esperança de encontrá-la, de sentir seu cheiro fresco. Imaginava que a veria com roupas mais pesadas, fechadas, mas, que mesmo assim, não tirariam a beleza de seus cabelos negros e cacheados. Ele não a viu. Coragem lhe faltava, já que sabia onde ela morava. Porém, coragem é uma virtude engraçada, assim como quando pequeno eu fui picado por um marimbondo e nunca mais pude chegar perto de um, ou então, quando ligando a tevê tomei um grande choque e desde então estou sem televisão.
E foi assim o inverno inteiro. Os cheiros se tornando mais fortes, uns insuportáveis pela compreensível necessidade de não se lavar costumeiramente os casacos, ou mesmo, no caso de alguns, a ponderada prática do banho. O inverno lhe era insuportável, pestilento era o metrô, o ônibus ou até mesmo o cinema na Lobo Júnior. Talvez por isso só saía de casa para trabalhar. Como eu quando fui à França no outono e senti a diferença do Brasil. Na França, aliás, sentiríamos diferença até no pão francês. Não. Modéstia sua perguntar!
Lá vai ele, sem saber por que esperando o cheiro do amor, dizem que um dia até encontrou, mas, por um sei lá o quê de falta de jeito ficou apenas na memória, na sua boa memória olfativa.


25-01-09/ 19-06-09

Um comentário:

Beatriz Santrozi disse...

Peculiar... Talvez você tenha errado na mão ora aqui, ora ali, mas no geral o conto é bom. Tem cheiro... Mas cuidado para não exagerar no alho! Parabéns!